Ana Bárbara Pedrosa | Palavra do Senhor e Amor Estragado
Dois livros da Ana Bárbara Pedrosa, editados pela Bertrand Editora e que aconselho vivamente.
Review Palavra do Senhor
Esta review está para ser escrita há 2 anos. Vergonhoso da minha parte. Li o livro, adorei, entrevistei a Ana Bárbara para o Covidarte e nunca escrevi o que queria ter escrito na altura. Foi com este livro que conheci a escrita da Ana Bárbara, que me agarrou do início ao fim do livro.
Espero aguçar-vos a curiosidade e aconselho a quem nunca leu nada da autora que comece por este.
Deus Nosso Senhor decidiu ir até ao psicanalista. Finalmente! O psicanalista somos nós 一 os leitores. Interessante como me senti parte ativa deste livro.
Deus é sádico, retira prazer do sofrimento alheio, comanda o mundo por trilhos de caos e paz. Brinca e diverte-se com as nossas vidinhas. É assim que se entretém connosco desde que criou este mundo que experienciamos 365 dias por ano (366 em anos bissextos). Eu disse “desde que criou este mundo”? É o efeito deste livro… Vivemos intensamente a história e depois escrevemos estas barbaridades.
Na verdade, segundo o próprio narrador deste livro “Levam à letra coisas de que já me arrependi, que não me dizem nada, que improvisei na altura. Também eu cresci, tornei-me num Deus melhor, como um rapaz que se faz homem. Hoje o que quero para o mundo é outra coisa. Não me interessam as trevas nem as vinganças e as guerras causam-me asco”. Estamos na página 13 e a autora já colocou Deus a mentir (é só a minha modesta opinião).
Foi também com este livro que percebi que falho ao cuidar de mim e o grande motivo de Adão ter aterrado num jardim (percebi assim as duas coisas, duma vez):: “E já se sabe como é: para saber se sabemos cuidar de nós, primeiro cuidamos de uma planta. Por isso pus um homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”.
Este livro ofereceu-me uma certa terapia, muitas gargalhadas e uma leitura a uma velocidade incrível. Não há palavras a mais, nem a menos. Tudo está na medida certa.
Passagens como o Adão que já não pode ouvir a Eva ou esta sobre Caim “Talvez a culpa tenha sido minha por não lhes apontar o caminho. Afinal, fui eu quem provocou Caim e deixou que a sua espécie se reproduzisse em cima de um homicídio”, mostram que Deus precisa mesmo de acompanhamento psiquiátrico.
Claro que o amor que nutria por Maria também é assunto. “Quanto a Maria, não foi sol de pouca dura. Quem ama odeia, e por isso odiei-a muitas vezes, durante anos e até durante séculos. Não foi fácil, mas pelo menos pus o mundo a dizer que o filho é nosso e, se ninguém a imagina na cama com José, muito menos sabem do affair com Gabriel”.
Sou fã deste Deus! Também eu nutro amor ódio por ele. A forma como conta a sua vida neste divã é incrível. Eu enquanto o ouço falar nesta história reforço opiniões que já tinha sobre a teoria de ter sido ele a criar o Mundo.
O conhecimento que a Ana Bárbara tem da Bíblia é impressionante. Eu não o tenho, nunca a li, mas ao ler este livro assumo que quero ler a bíblia. Acho que deve ser um desafio interessante.
A Ana Bárbara Pedrosa ainda vai dar muito que falar enquanto escritora. Este é o seu segundo romance (ainda não li o primeiro, Lisboa, Chão Sagrado, que já está na minha lista para encomendar). Foi o livro certo para a conhecer enquanto escritora: tem um humor requintado, uma escrita fluida e cativante e um ritmo incrível.
Review Amor Estragado
“Matei a minha mulher. Não fiz de propósito, mas é daquelas coisas que, depois de feitas, já não deixam volta a dar.” 一 assim começa o novo livro da Ana Bárbara Pedrosa. Final anunciado e muito para ser contado. Preparem-se para coisas duras de ler, fazer uma visita à triste realidade da violência doméstica e dar um pulinho até ao mundo da estupidez humana. Tudo em 200 páginas de escrita real, sem rodeios e com a voz distinta da Ana Bárbara.
Temas como: a deterioração das relações familiares; o desafio entre fazer o que é certo ou proteger aqueles que partilham connosco laços de sangue e a imagem estereotipada que a maioria de nós tem dos agressores.
É um livro escrito num tom bruto, com momentos muito agressivos, e que nos conquista pela crueza da escrita e dureza da mensagem que passa.
O primeiro romance que li da autora é completamente diferente e não sinto que possa estabelecer comparações. Talvez frisar que a Ana Bárbara tem a facilidade de nos fazer mergulhar em temas distintos e navegar entre o humor e a brutalidade como peixe na água.
Entre o Manel (agressor) e o Zé (o seu irmão mais velho) vamos ouvindo perspetivas diferentes da história de vida partilhada e dos supostos motivos que levaram ao homicídio da Ema. São traçadas as personalidades e as visões que têm um dos outros.
“O Manel achou durante demasiado tempo que lhe bastava ser irmão, que não tinha de provar nada, que nem precisava de acertar. Que nós eramos a rede do trapézio para a maldade. (…) Mesmo depois de a matar, nunca lhe passou pela cabeça que nós nos pudéssemos ter perguntado o que é que ela veria nele”. É a visão do Zé que mais me agarra à leitura e é este personagem que assume, para mim, um papel fundamental na narrativa.
Uma experiência de leitura muito diferente do seu anterior romance, que nos faz refletir sobre uma série de questões sociais, económicas e culturais.
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