
Entrevista a Ana Bárbara Pedrosa
Cruzei-me com a Ana Bárbara Pedrosa durante a pandemia. Em julho de 2021, entrevistei-a para o Covidarte e ficaria a conhecer melhor o seu trabalho enquanto escritora. É uma caixinha de surpresas!
Proprietária de:
- um humor incrível
- uma escrita limpa de preciosismos
- um forma muito direta de comunicar
Os três pontos acima são meramente indicativos do que podem esperar se um dia se cruzarem com a Ana Bárbara Pedrosa e a sua escrita.
Nota: se passarem por ela livrem-se de a tratar apenas por Ana.
No fim desta entrevista encontram a review dos livros Palavra do Senhor e Amor Estragado (ambos da Bertrand Editora). A Ana Bárbara Pedrosa levou-me numa viagem entre Deus no divã de um psicanalista, em 2021, e um Manel cheio de testosterona e problemas de autoconfiança, em 2023.
Obrigada, Ana Bárbara por aceitares esta entrevista e parabéns pelo novo livro Amor Estragado.
No lançamento do Amor Estragado, na Ler Devagar, contaste que este livro esteve 10 anos a ser pensado, escrito e reescrito. Fala-nos um pouco sobre esse processo.
Não foram dez anos de forma linear, mas foi mais ou menos isso desde o momento em que comecei a escrever a história até atingir esta forma final. Claro que pelo meio houve vários interregnos: umas vezes, de uns meses; outras, de anos. Escrevi a primeira versão algures em 2013, antes de me mudar para o Brasil. Daí, já havia o esqueleto da família, que viria a sobreviver até à forma final, mas pouco mais sobreviveu. A prosa mudou completamente, acho que não sobrou uma única frase da primeira tentativa de romance. Ao longo destes anos, fui aprendendo muito sobre escrita, publiquei dois romances, escrevi outro que entretanto está na gaveta. As tentativas anteriores incluíram experiências muito diferentes até eu ter conseguido uma versão que me satisfizesse. A primeira versão estava na terceira pessoa, por exemplo. Uma posterior estava escrita apenas pela voz do Zé. Só nesta última é que pensei em escrever sob o ponto de vista do Manel. Com ele, podia trazer uma primeira voz mais violenta, uma cabeça mais estropiada. Isso, para um ficcionista, tem sabor de voo. Mas também me interessava o contraponto que o Zé podia fazer e, em termos de estrutura da narrativa, os capítulos dele também servem para que o leitor possa respirar, e por isso não abdiquei dele.
A tua escrita neste livro é mais dura e, muitas vezes, muito característica de um estrato social. Senti que o Manel vai ao encontro do estereótipo que a sociedade tem do abusador/agressor. Porque não fugiste desse tipo de agressor? Consideras que a sociedade tem uma imagem preconcebida de quem agride?
Não fugi nem fui ao encontro. Simplesmente, quis contar a vida daquela família, daquelas personagens. A questão da agressão, no exercício literário, nem me interessa por aí além. A violência doméstica no livro é um eixo que ajuda a constituir a narrativa, mas que não é o eixo principal. O que me interessava ali era a dissolução da família. A violência em si, para mais conjugal, é uma coisa muito a preto e branco. Quem a pratica é um crápula, não há muito mais a dizer, e não importa muito se falamos de alguém como o Manel ou como o Manuel Maria Carrilho. Dá no mesmo e, enquanto matéria literária, acaba por valer pouco. O desafio era o resto: o fim do amor intemporal, incondicional, e esse é o amor da família de origem. É inconcebível uma mãe deixar de amar um filho, dois irmãos deixarem de se dar. Foi essa dissolução que me interessou e foi esse o amor que se estragou.
Entre Palavra do Senhor e Amor Estragado algo se repete: a forma como evidencias a violência e o lado mais sádico e cru do ser humano. Consideras que há um Manel escondido em cada um de nós? Que a violência que retratas nos teus livros está intrinsecamente ligada a nós?
Não.
O Zé. Na leitura do teu livro é a visão que o Zé tem dos factos que mais mexeu comigo. Trazes para este livro o conceito de família (seja ela disfuncional ou não), de traições e laços que se quebram, de formas diferentes de ver o certo e o errado. Como pensaste o lugar da voz do Zé neste enredo?
A voz do Zé, ao longo do processo, até surgiu antes da voz do Manel, precisamente porque o que me interessava era a dissolução desse eixo. Dá muita margem de manobra pensar na degradação de alguém que se conheceu desde sempre – no caso, um irmão – e ver essa degradação como motivo de afastamento. O rapaz que era visto como o irmão mais velho, um de nós, de repente transforma-se noutra coisa. Ao meter-se no grupo dos bêbedos, outra-se e passa a ser um deles.
Deste-me vários murros no estômago durante a leitura. A morte pelas mãos da violência, o medo que se deve sentir quando percebemos que estaremos perante o momento final. Falaste com algumas vítimas de violência enquanto escrevias o livro? Qual a tua proximidade a este assunto?
Não. Para isso, mais me valeria falar com alguém que tivesse agredido alguém no âmbito de uma relação conjugal, uma vez que foi essa a personagem que tive de construir.
O livro não é sobre violência doméstica. Não tenho nenhuma proximidade relevante ao tema.
Como foi a experiência de matares a Ema, mulher do Manel?
Foi muito boa, muito intensa. A escrita dá muita vida interior, o que não significa que essa vida em si seja agradável, ou que este “boa” tenha carácter de amabilidade. Mas foi boa por ser intensa, que é o que procuro na escrita. Ao mesmo tempo, tive de levar o teatro da ficcionalização ao máximo. Sou a antítese do Manel em muitas coisas, e uma delas é a minha incapacidade para a violência. Até nos treinos de kickboxing e jiu jitsu tenho dificuldades com a ideia de poder fazer mossa a alguém. Se calhar, é por isso que estou sempre a levar porrada. Mas a escrita permite ser outra cabeça ao mesmo tempo que se cria outra cabeça. No caso da leitura, só se pode ser, sem se criar. Isso significa que escrever também pode trazer remorsos, coisa que me aconteceu com a Ema. Na véspera de a matar, cheguei à sala quase transtornada e disse: “Agora não há nada a fazer. Vou matar a Ema amanhã.” Isto estava decidido desde a primeira frase, “Matei a minha mulher”, nunca poderia ser de outra maneira. Mas acho que me senti como o Zé quando percebeu que podia ter evitado mas não evitou.
Escrever isto na primeira pessoa também teve momentos de montanha-russa. Num momento, eu era o Manel; depois, o carteiro tocava à campainha e eu era eu de novo. Até me interrompeu a meio do assassinato. Houve assim uma espécie de aterragem em bruto, e eu ainda estive ali meio abananada a receber os livros que ele trazia com a sensação de que escondia um cadáver no escritório, que fazia uma coisa proibida.
Não sei como será com os próximos, mas, para já, Amor estragado foi o livro que mais me exauriu emocionalmente. E gostei muito de ser o Manel; inventar outros eixos de raciocínio foi uma experiência muito divertida. E, claro, ainda há a questão da voz: eu não falo assim e tive de aprender a falar e a ser capaz de dizer as mesmas coisas, veiculando os mesmos sentidos, com uma linguagem que, à partida, é mais reduzida.
Está lançado, nas mãos de muita gente, a ser lido e partilhado. Como sentes que tem sido a adesão a este novo livro?
Tenho visto alguns leitores e a recepção parece-me estar a ser muito boa. Este tipo de estética não tem sido comum na literatura portuguesa. Os leitores têm dito que o livro é cru, o que me deixa muito contente. Não há grande erudição nas duas vozes narrativas, e acho que é precisamente isso que vai atraindo os leitores: não sentem que estão a ser enganados por uma voz a armar ao literário ou ao intelectual. Também me irrita muito, quando leio, ver palavras que não fazem sentido naquela voz. Cada livro pede uma voz, cada personagem também. Foi isso que tentei fazer aqui.
Já estás a escrever o próximo?
Tenho um romance na gaveta a descansar e estou a trabalhar noutras duas coisas, muito diferentes dos livros publicados e entre si, às pinguinhas.
Obrigada, Ana Bárbara e muito sucesso!
Review Palavra do Senhor
Esta review está para ser escrita há 2 anos. Vergonhoso da minha parte. Li o livro, adorei, entrevistei a Ana Bárbara para o Covidarte e nunca escrevi o que queria ter escrito na altura. Foi com este livro que conheci a escrita da Ana Bárbara, que me agarrou do início ao fim do livro.
Espero aguçar-vos a curiosidade e aconselho a quem nunca leu nada da autora que comece por este.
Deus Nosso Senhor decidiu ir até ao psicanalista. Finalmente! O psicanalista somos nós 一 os leitores. Interessante como me senti parte ativa deste livro.
Deus é sádico, retira prazer do sofrimento alheio, comanda o mundo por trilhos de caos e paz. Brinca e diverte-se com as nossas vidinhas. É assim que se entretém connosco desde que criou este mundo que experienciamos 365 dias por ano (366 em anos bissextos). Eu disse “desde que criou este mundo”? É o efeito deste livro… Vivemos intensamente a história e depois escrevemos estas barbaridades.
Na verdade, segundo o próprio narrador deste livro “Levam à letra coisas de que já me arrependi, que não me dizem nada, que improvisei na altura. Também eu cresci, tornei-me num Deus melhor, como um rapaz que se faz homem. Hoje o que quero para o mundo é outra coisa. Não me interessam as trevas nem as vinganças e as guerras causam-me asco”. Estamos na página 13 e a autora já colocou Deus a mentir (é só a minha modesta opinião).
Foi também com este livro que percebi que falho ao cuidar de mim e o grande motivo de Adão ter aterrado num jardim (percebi assim as duas coisas, duma vez):: “E já se sabe como é: para saber se sabemos cuidar de nós, primeiro cuidamos de uma planta. Por isso pus um homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”.
Este livro ofereceu-me uma certa terapia, muitas gargalhadas e uma leitura a uma velocidade incrível. Não há palavras a mais, nem a menos. Tudo está na medida certa.
Passagens como o Adão que já não pode ouvir a Eva ou esta sobre Caim “Talvez a culpa tenha sido minha por não lhes apontar o caminho. Afinal, fui eu quem provocou Caim e deixou que a sua espécie se reproduzisse em cima de um homicídio”, mostram que Deus precisa mesmo de acompanhamento psiquiátrico.
Claro que o amor que nutria por Maria também é assunto. “Quanto a Maria, não foi sol de pouca dura. Quem ama odeia, e por isso odiei-a muitas vezes, durante anos e até durante séculos. Não foi fácil, mas pelo menos pus o mundo a dizer que o filho é nosso e, se ninguém a imagina na cama com José, muito menos sabem do affair com Gabriel”.
Sou fã deste Deus! Também eu nutro amor ódio por ele. A forma como conta a sua vida neste divã é incrível. Eu enquanto o ouço falar nesta história reforço opiniões que já tinha sobre a teoria de ter sido ele a criar o Mundo.
O conhecimento que a Ana Bárbara tem da Bíblia é impressionante. Eu não o tenho, nunca a li, mas ao ler este livro assumo que quero ler a bíblia. Acho que deve ser um desafio interessante.
A Ana Bárbara Pedrosa ainda vai dar muito que falar enquanto escritora. Este é o seu segundo romance (ainda não li o primeiro, Lisboa, Chão Sagrado, que já está na minha lista para encomendar). Foi o livro certo para a conhecer enquanto escritora: tem um humor requintado, uma escrita fluida e cativante e um ritmo incrível.
Review Amor Estragado
“Matei a minha mulher. Não fiz de propósito, mas é daquelas coisas que, depois de feitas, já não deixam volta a dar.” 一 assim começa o novo livro da Ana Bárbara Pedrosa. Final anunciado e muito para ser contado. Preparem-se para coisas duras de ler, fazer uma visita à triste realidade da violência doméstica e dar um pulinho até ao mundo da estupidez humana. Tudo em 200 páginas de escrita real, sem rodeios e com a voz distinta da Ana Bárbara.
Temas como: a deterioração das relações familiares; o desafio entre fazer o que é certo ou proteger aqueles que partilham connosco laços de sangue e a imagem estereotipada que a maioria de nós tem dos agressores.
É um livro escrito num tom bruto, com momentos muito agressivos, e que nos conquista pela crueza da escrita e dureza da mensagem que passa.
O primeiro romance que li da autora é completamente diferente e não sinto que possa estabelecer comparações. Talvez frisar que a Ana Bárbara tem a facilidade de nos fazer mergulhar em temas distintos e navegar entre o humor e a brutalidade como peixe na água.
Entre o Manel (agressor) e o Zé (o seu irmão mais velho) vamos ouvindo perspetivas diferentes da história de vida partilhada e dos supostos motivos que levaram ao homicídio da Ema. São traçadas as personalidades e as visões que têm um dos outros.
“O Manel achou durante demasiado tempo que lhe bastava ser irmão, que não tinha de provar nada, que nem precisava de acertar. Que nós eramos a rede do trapézio para a maldade. (…) Mesmo depois de a matar, nunca lhe passou pela cabeça que nós nos pudéssemos ter perguntado o que é que ela veria nele”. É a visão do Zé que mais me agarra à leitura e é este personagem que assume, para mim, um papel fundamental na narrativa.
Uma experiência de leitura muito diferente do seu anterior romance, que nos faz refletir sobre uma série de questões sociais, económicas e culturais.

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