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Entrevista a Ana Bárbara Pedrosa

Entrevista a Ana Bárbara Pedrosa

Cruzei-me com a Ana Bárbara Pedrosa durante a pandemia. Em julho de 2021, entrevistei-a para o Covidarte e ficaria a conhecer melhor o seu trabalho enquanto escritora. É uma caixinha de surpresas!

Proprietária de:

  • um humor incrível
  • uma escrita limpa de preciosismos
  • um forma muito direta de comunicar 

Os três pontos acima são meramente indicativos do que podem esperar se um dia se cruzarem com a Ana Bárbara Pedrosa e a sua escrita. 

Nota: se passarem por ela livrem-se de a tratar apenas por Ana.

No fim desta entrevista encontram a review dos livros Palavra do Senhor e Amor Estragado (ambos da Bertrand Editora). A Ana Bárbara Pedrosa levou-me numa viagem entre Deus no divã de um psicanalista, em 2021, e um Manel cheio de testosterona e problemas de autoconfiança, em 2023. 

Obrigada, Ana Bárbara por aceitares esta entrevista e parabéns pelo novo livro Amor Estragado.

No lançamento do Amor Estragado, na Ler Devagar, contaste que este livro esteve 10 anos a ser pensado, escrito e reescrito. Fala-nos um pouco sobre esse processo.

Não foram dez anos de forma linear, mas foi mais ou menos isso desde o momento em que comecei a escrever a história até atingir esta forma final. Claro que pelo meio houve vários interregnos: umas vezes, de uns meses; outras, de anos. Escrevi a primeira versão algures em 2013, antes de me mudar para o Brasil. Daí, já havia o esqueleto da família, que viria a sobreviver até à forma final, mas pouco mais sobreviveu. A prosa mudou completamente, acho que não sobrou uma única frase da primeira tentativa de romance. Ao longo destes anos, fui aprendendo muito sobre escrita, publiquei dois romances, escrevi outro que entretanto está na gaveta. As tentativas anteriores incluíram experiências muito diferentes até eu ter conseguido uma versão que me satisfizesse. A primeira versão estava na terceira pessoa, por exemplo. Uma posterior estava escrita apenas pela voz do Zé. Só nesta última é que pensei em escrever sob o ponto de vista do Manel. Com ele, podia trazer uma primeira voz mais violenta, uma cabeça mais estropiada. Isso, para um ficcionista, tem sabor de voo. Mas também me interessava o contraponto que o Zé podia fazer e, em termos de estrutura da narrativa, os capítulos dele também servem para que o leitor possa respirar, e por isso não abdiquei dele.

A tua escrita neste livro é mais dura e, muitas vezes, muito característica de um estrato social. Senti que o Manel vai ao encontro do estereótipo que a sociedade tem do abusador/agressor. Porque não fugiste desse tipo de agressor? Consideras que a sociedade tem uma imagem preconcebida de quem agride?

Não fugi nem fui ao encontro. Simplesmente, quis contar a vida daquela família, daquelas personagens. A questão da agressão, no exercício literário, nem me interessa por aí além. A violência doméstica no livro é um eixo que ajuda a constituir a narrativa, mas que não é o eixo principal. O que me interessava ali era a dissolução da família. A violência em si, para mais conjugal, é uma coisa muito a preto e branco. Quem a pratica é um crápula, não há muito mais a dizer, e não importa muito se falamos de alguém como o Manel ou como o Manuel Maria Carrilho. Dá no mesmo e, enquanto matéria literária, acaba por valer pouco. O desafio era o resto: o fim do amor intemporal, incondicional, e esse é o amor da família de origem. É inconcebível uma mãe deixar de amar um filho, dois irmãos deixarem de se dar. Foi essa dissolução que me interessou e foi esse o amor que se estragou.

Entre Palavra do Senhor e Amor Estragado algo se repete: a forma como evidencias a violência e o lado mais sádico e cru do ser humano. Consideras que há um Manel escondido em cada um de nós? Que a violência que retratas nos teus livros está intrinsecamente ligada a nós? 

Não.

O Zé. Na leitura do teu livro é a visão que o Zé tem dos factos que mais mexeu comigo. Trazes para este livro o conceito de família (seja ela disfuncional ou não), de traições e laços que se quebram, de formas diferentes de ver o certo e o errado. Como pensaste o lugar da voz do Zé neste enredo?

A voz do Zé, ao longo do processo, até surgiu antes da voz do Manel, precisamente porque o que me interessava era a dissolução desse eixo. Dá muita margem de manobra pensar na degradação de alguém que se conheceu desde sempre – no caso, um irmão – e ver essa degradação como motivo de afastamento. O rapaz que era visto como o irmão mais velho, um de nós, de repente transforma-se noutra coisa. Ao meter-se no grupo dos bêbedos, outra-se e passa a ser um deles.

Deste-me vários murros no estômago durante a leitura. A morte pelas mãos da violência, o medo que se deve sentir quando percebemos que estaremos perante o momento final. Falaste com algumas vítimas de violência enquanto escrevias o livro? Qual a tua proximidade a este assunto?

Não. Para isso, mais me valeria falar com alguém que tivesse agredido alguém no âmbito de uma relação conjugal, uma vez que foi essa a personagem que tive de construir.

O livro não é sobre violência doméstica. Não tenho nenhuma proximidade relevante ao tema.

Como foi a experiência de matares a Ema, mulher do Manel? 

Foi muito boa, muito intensa. A escrita dá muita vida interior, o que não significa que essa vida em si seja agradável, ou que este “boa” tenha carácter de amabilidade. Mas foi boa por ser intensa, que é o que procuro na escrita. Ao mesmo tempo, tive de levar o teatro da ficcionalização ao máximo. Sou a antítese do Manel em muitas coisas, e uma delas é a minha incapacidade para a violência. Até nos treinos de kickboxing e jiu jitsu tenho dificuldades com a ideia de poder fazer mossa a alguém. Se calhar, é por isso que estou sempre a levar porrada. Mas a escrita permite ser outra cabeça ao mesmo tempo que se cria outra cabeça. No caso da leitura, só se pode ser, sem se criar. Isso significa que escrever também pode trazer remorsos, coisa que me aconteceu com a Ema. Na véspera de a matar, cheguei à sala quase transtornada e disse: “Agora não há nada a fazer. Vou matar a Ema amanhã.” Isto estava decidido desde a primeira frase, “Matei a minha mulher”, nunca poderia ser de outra maneira. Mas acho que me senti como o Zé quando percebeu que podia ter evitado mas não evitou.

Escrever isto na primeira pessoa também teve momentos de montanha-russa. Num momento, eu era o Manel; depois, o carteiro tocava à campainha e eu era eu de novo. Até me interrompeu a meio do assassinato. Houve assim uma espécie de aterragem em bruto, e eu ainda estive ali meio abananada a receber os livros que ele trazia com a sensação de que escondia um cadáver no escritório, que fazia uma coisa proibida.

Não sei como será com os próximos, mas, para já, Amor estragado foi o livro que mais me exauriu emocionalmente. E gostei muito de ser o Manel; inventar outros eixos de raciocínio foi uma experiência muito divertida. E, claro, ainda há a questão da voz: eu não falo assim e tive de aprender a falar e a ser capaz de dizer as mesmas coisas, veiculando os mesmos sentidos, com uma linguagem que, à partida, é mais reduzida.

Está lançado, nas mãos de muita gente, a ser lido e partilhado. Como sentes que tem sido a adesão a este novo livro?

Tenho visto alguns leitores e a recepção parece-me estar a ser muito boa. Este tipo de estética não tem sido comum na literatura portuguesa. Os leitores têm dito que o livro é cru, o que me deixa muito contente. Não há grande erudição nas duas vozes narrativas, e acho que é precisamente isso que vai atraindo os leitores: não sentem que estão a ser enganados por uma voz a armar ao literário ou ao intelectual. Também me irrita muito, quando leio, ver palavras que não fazem sentido naquela voz. Cada livro pede uma voz, cada personagem também. Foi isso que tentei fazer aqui.

Já estás a escrever o próximo? 

Tenho um romance na gaveta a descansar e estou a trabalhar noutras duas coisas, muito diferentes dos livros publicados e entre si, às pinguinhas.

Obrigada, Ana Bárbara e muito sucesso!

Review Palavra do Senhor

Esta review está para ser escrita há 2 anos. Vergonhoso da minha parte. Li o livro, adorei, entrevistei a Ana Bárbara para o Covidarte e nunca escrevi o que queria ter escrito na altura. Foi com este livro que conheci a escrita da Ana Bárbara, que me agarrou do início ao fim do livro. 

Espero aguçar-vos a curiosidade e aconselho a quem nunca leu nada da autora que comece por este.

Deus Nosso Senhor decidiu ir até ao psicanalista. Finalmente! O psicanalista somos nós 一 os leitores. Interessante como me senti parte ativa deste livro.

Deus é sádico, retira prazer do sofrimento alheio, comanda o mundo por trilhos de caos e paz. Brinca e diverte-se com as nossas vidinhas. É assim que se entretém connosco desde que criou este mundo que experienciamos 365 dias por ano (366 em anos bissextos). Eu disse “desde que criou este mundo”? É o efeito deste livro… Vivemos intensamente a história e depois escrevemos estas barbaridades.

Na verdade, segundo o próprio narrador deste livro “Levam à letra coisas de que já me arrependi, que não me dizem nada, que improvisei na altura. Também eu cresci, tornei-me num Deus melhor, como um rapaz que se faz homem. Hoje o que quero para o mundo é outra coisa. Não me interessam as trevas nem as vinganças e as guerras causam-me asco”. Estamos na página 13 e a autora já colocou Deus a mentir (é só a minha modesta opinião). 

Foi também com este livro que percebi que falho ao cuidar de mim e o grande motivo de Adão ter aterrado num jardim (percebi assim as duas coisas, duma vez):: “E já se sabe como é: para saber se sabemos cuidar de nós, primeiro cuidamos de uma planta. Por isso pus um homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”. 

Este livro ofereceu-me uma certa terapia, muitas gargalhadas e uma leitura a uma velocidade incrível. Não há palavras a mais, nem a menos. Tudo está na medida certa. 

Passagens como o Adão que já não pode ouvir a Eva ou esta sobre Caim “Talvez a culpa tenha sido minha por não lhes apontar o caminho. Afinal, fui eu quem provocou Caim e deixou que a sua espécie se reproduzisse em cima de um homicídio”, mostram que Deus precisa mesmo de acompanhamento psiquiátrico. 

Claro que o amor que nutria por Maria também é assunto. “Quanto a Maria, não foi sol de pouca dura. Quem ama odeia, e por isso odiei-a muitas vezes, durante anos e até durante séculos. Não foi fácil, mas pelo menos pus o mundo a dizer que o filho é nosso e, se ninguém a imagina na cama com José, muito menos sabem do affair com Gabriel”.

Sou fã deste Deus! Também eu nutro amor ódio por ele. A forma como conta a sua vida neste divã é incrível.  Eu enquanto o ouço falar nesta história reforço opiniões que já tinha sobre a teoria de ter sido ele a criar o Mundo.

O conhecimento que a Ana Bárbara tem da Bíblia é impressionante. Eu não o tenho, nunca a li, mas ao ler este livro assumo que quero ler a bíblia. Acho que deve ser um desafio interessante.

A Ana Bárbara Pedrosa ainda vai dar muito que falar enquanto escritora. Este é o seu segundo romance (ainda não li o primeiro, Lisboa, Chão Sagrado, que já está na minha lista para encomendar). Foi o livro certo para a conhecer enquanto escritora: tem um humor requintado, uma escrita fluida e cativante e um ritmo incrível.

Review Amor Estragado

“Matei a minha mulher. Não fiz de propósito, mas é daquelas coisas que, depois de feitas, já não deixam volta a dar.” 一 assim começa o novo livro da Ana Bárbara Pedrosa. Final anunciado e muito para ser contado. Preparem-se para coisas duras de ler, fazer uma visita à triste realidade da violência doméstica e dar um pulinho até ao mundo da estupidez humana. Tudo em 200 páginas de escrita real, sem rodeios e com a voz distinta da Ana Bárbara. 

Temas como: a deterioração das relações familiares; o desafio entre fazer o que é certo ou proteger aqueles que partilham connosco laços de sangue e a imagem estereotipada que a maioria de nós tem dos agressores.

É um livro escrito num tom bruto, com momentos muito agressivos, e que nos conquista pela crueza da escrita e dureza da mensagem que passa. 

O primeiro romance que li da autora é completamente diferente e não sinto que possa estabelecer comparações. Talvez frisar que a Ana Bárbara tem a facilidade de nos fazer mergulhar em temas distintos e navegar entre o humor e a brutalidade como peixe na água.

Entre o Manel (agressor) e o Zé (o seu irmão mais velho) vamos ouvindo perspetivas diferentes da história de vida partilhada e dos supostos motivos que levaram ao homicídio da Ema. São traçadas as personalidades e as visões que têm um dos outros.

“O Manel achou durante demasiado tempo que lhe bastava ser irmão, que não tinha de provar nada, que nem precisava de acertar. Que nós eramos a rede do trapézio para a maldade. (…) Mesmo depois de a matar, nunca lhe passou pela cabeça que nós nos pudéssemos ter perguntado o que é que ela veria nele”. É a visão do Zé que mais me agarra à leitura e é este personagem que assume, para mim, um papel fundamental na narrativa. 

Uma experiência de leitura muito diferente do seu anterior romance, que nos faz refletir sobre uma série de questões sociais, económicas e culturais. 

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João Concha | Exposição “Que casa sou?”

João Concha | Exposição “Que casa sou?”

Cruzei-me com o João numa aula do Mestrado em Edição de Texto. O que é que isso interessa? Tudo e muito!
Foi convidado pelo Professor Rui Zink para nos apresentar a Não Edições, que sempre considerei uma editora incrível: a estética, a linha editorial, a visão, a aparente simplicidade de todo o trabalho. Quanto mais simples nos parece, mais complexo costuma ser. O João é uma pessoa com uma sensibilidade acima da média, um sentido estético refinado e uma simpatia cativante. É fácil criar-se uma ligação empática com ele (digo eu).
Aquela aula em que o João foi convidado para falar do seu trabalho enquanto editor aguçou-me a curiosidade.
Algum tempo mais tarde, já durante a pandemia, entrevistei-o para o Covidarte e ficaria a conhecer mais um pouco do seu trabalho.
Agora, em julho de 2023, inaugura a exposição “Que casa sou?” onde reúne uma série de pinturas resultantes de uma residência de 3 meses. Foco, determinação e visão são algumas das características que atribuo ao João.
A exposição estará na Casa da Cultura de Setúbal, até setembro de 2023, e acreditem que não a querem perder. Alimenta a reflexão sobre o espaço que ocupamos, a forma como o ocupamos, o lugar das ideias, do estar, do tempo e do ser.

Obrigada, João por aceitares esta entrevista e parabéns pela excelente exposição!

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Margarida Azevedo (MA): Fala-nos um pouco de como nasceram estas tuas casas (da ideia à conceção).

João Concha (JC): É difícil perceber de onde vêm certas coisas, motivos ou obsessões.

Parece-me que é isso que sucede com estas casas (ou não-casas) e talvez com grande parte do meu trabalho plástico. Aliás, é uma tarefa ingrata para quem cria, a de analisar ou desmontar uma dada pesquisa (sua), quando também é feita de erros, desvios, acidentes…

Este arquétipo da ‘casa’ acompanha-me há anos, mas foi em 2013/2014 que fiz os primeiros trabalhos em série, partindo de desenhos em projecção ortogonal para desconstruir a forma ‘casa’, como se fosse uma caixa aberta ou planificada. Depois desta abordagem mais racionalizada e de controlo das formas recortadas em papel passei a pinturas de maior dimensão, em que já andava à procura de outra coisa. Esses trabalhos deram origem à exposição “abre para dentro”, em 2018, na Galeria Monumental.

A partir de 2019, uma tese de doutoramento e, mais tarde, os confinamentos pandémicos fizeram-me estar em casa mais tempo do que supunha. Uma mudança de casa precipitou outras mudanças e este tema da ‘casa’, ou melhor, do ‘lar’ (‘home‘, difícil encontrar palavra em português para isso, sem a conotação que ‘lar’ adquiriu) voltou a ser importante. 

Em 2021 tornei a desenhar e retomei a prática de um diário gráfico. Acho que tentava fugir ao domínio do ‘verbal’, numa espécie de compensação face aos anos que passei com a tese… que é sempre algo avassalador. Foi o regresso a um exercício visual assente no gesto: multiplicaram-se os esboços rápidos, mais repetitivos ou mais exploratórios. E ainda que os visse inicialmente como um meio (eventuais estudos para pinturas, que não podia fazer por ter ficado sem atelier), fui percebendo que não me fazia sentido hierarquizar ‘processo’ e ‘resultado’, ‘desenho’ e ‘pintura’, quase indestrinçáveis. O ‘meio’ e o ‘fim’ esbatiam-se, por isso aceitei expor esses diários e mostrar desenhos originais e reproduções na Fabrica Features Lisboa, em 2022. Afinal de contas, numa exposição partilho sempre um processo, uma fase concreta do caminho em que me encontro. E essa mostra foi vista pelo José Teófilo Duarte, que me convidou a apresentar trabalho na Casa da Cultura, na altura sem uma data definida.

Já em 2023, desde Abril, tive a oportunidade de fazer uma residência artística na Duplex | air e ter tempo/espaço, entre outras condições práticas, para pensar e trabalhar o tema. Na Duplex vim a encontrar também uma ‘casa’, já habitada por artistas permanentes ou de passagem. É desse período muito intenso que vêm os trabalhos agora mostrados em “Que casa sou?” e nos quais me interessa radicalizar o valor do gesto e da cor, para tocar uma noção mais subjectivada da ‘casa’ enquanto espaço ou lugar emocional.

MA: Enquanto falávamos na inauguração referiste-te às casas e à sua importância na segunda infância. Podes dar-nos a tua visão sobre a importância do desenho e da pintura na infância?

JC: Na verdade, acho que conversávamos (também com a Ana Nogueira) sobre como a figura da ‘casa’ é a segunda representação visual que muitas crianças fazem. Há a primeira, o rosto, que é um círculo com elementos figurativos, e depois a casa, um quadrado ou retângulo a que se soma um triângulo. Os detalhes variam, mas esse arquétipo é expresso desde a infância: um lugar reconhecível e, em princípio, seguro. Embora as sombras e as contradições também o habitem, e isso passa pelos trabalhos que viste, creio eu. E a memória espacial das casas em que vivi, na infância e ao longo da vida, está na base destes desenhos ou pinturas (já não os distingo, neste caso).

O desenho é uma forma de expressão de que me lembro desde sempre. Mesmo para fases das quais não tenho grande memória, existem desenhos que os meus pais guardaram e que hoje olho com surpresa (como se não fossem meus). São muito anteriores a ter aprendido a escrever. Não quero entrar pela questão da importância do desenho na infância, até porque não sou especialista no assunto, mas posso dizer que para mim desenhar era tão ou mais natural do que falar, brincar… era também, ou acima de tudo, uma forma de brincar. Para um filho único, tímido mas curioso, as fronteiras entre o real e o imaginário eram pouco evidentes [risos]. E o desenho estava e está, para mim, ligado ao prazer. Materialização e exteriorização lúdicas, do corpo e a partir dele, um “pensamento da mão”.

Agora, invertendo a relação de importância que sugeriste entre desenho e infância, eu diria que um certo olhar ou experiência do mundo e do próprio corpo enquanto ‘criança’ (estou a pensar no espanto, na curiosidade) é essencial para o desenho ou mesmo para a pintura, tal como os vejo e pratico. E aí lembro-me de vários artistas que falaram, de alguma forma, sobre isso, de Klee a Picasso, e que o trabalharam, mas também poetas, como Manoel de Barros…

MA: Os teus trabalhos são muito expressivos plasticamente. Como utilizas o gesto como forma de expressão? 

JC: Falava há pouco no gesto, sim, e no desenho é ele que, por vezes, decide e define. Não sei se consigo responder à tua pergunta, pois depende muito de cada trabalho. Há talvez um lado experimental e nem sempre controlado, em que lido com a imperfeição (o erro, o inacabado, a sobreposição de vários gestos), pelo menos em algumas das coisas que expus. Implica estar aberto ao que acontece com a própria matéria, quer com o suporte, quer com as tintas e outros materiais que uso para riscar: lápis de cera, pastel de óleo. Uso bastante a linha, inclusive nas pinturas, mas cada trabalho é um trabalho e espero que dê a ver algo do próprio processo… não me interessa especialmente ocultá-lo… ou deixar limpo o resultado.

MA: Tens uma casa de pernas para o ar. Que mensagem pretendes passar com essa “caixa” ao contrário?

JC: Tenho dúvidas quanto a “passar mensagens”, isto é, quanto à necessidade de ‘comunicar’ no trabalho artístico. Não procuro usar uma linguagem que torne inequívoca uma suposta troca entre quem produziu e quem vê, ao género emissor-receptor.

Há imagens que não sei bem de onde surgem, ainda que possa desconfiar ou reflectir sobre isso, claro. Mas o mistério tem o seu lugar. E prefiro deixar espaço em branco para quem vê; interessam-me muito essas outras possibilidades de leitura…

É preciso acreditar nos “poderes da pintura” (penso em José Gil), sendo que, enquanto artista ou fruidor, interessam-me mais esses ‘poderes’ sinéstesicos (que advêm de uma experiência física, presencial e ‘em aberto’ da obra) do que as eventuais qualidades informativas da arte. A reflexão pode ser suscitada sem mensagem clara ou verbalizável, a partir da fruição: do visual e do pictórico, do simbólico e não só, mas sem uma agenda prévia.

Mesmo quando se dá título a um trabalho ou a uma exposição, como esta, prefiro o campo aberto e a pergunta (um ponto de interrogação) do que o registo declarativo. Há demasiadas legendas no mundo.

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MA: Além das pinturas tens algumas maquetes de casas. Casas que abrem em diferentes sentidos e que abrigam diferentes ideias. Porquê essas maquetes?

JC: Sempre tive alguma dificuldade com a tridimensionalidade, com a modelação de formas, mas fui encorajado por uma amiga artista [Maria João Lopes Fernandes] a arriscar esse exercício, e depois também durante a própria residência [Susana Rocha, directora artística da Duplex | air].

Encarei as maquetes em papel como estudos para os desenhos/pinturas, acreditas? Como forma de explorar a simplicidade espacial destas ‘não-casas’ e suas variações, mais acessíveis ou mais inacessíveis, mais abertas ou mais fechadas, à procura de sinais contraditórios… o visível e o invisível, por exemplo.

De início, não pensei expor essas construções muito precárias, em papel pintado, mas durante a montagem achei que faria sentido no contexto específico onde estão, junto àquela tela de maior dimensão, numa sala mais escura, etc. 

Enquanto pintava, ainda na Duplex, fiz uma série de fotografias com o telemóvel, para registo meu. Curiosamente, ao descarregar as imagens achei que havia ali outra coisa… algo de fantasmagórico… as imagens e o digital transformaram por completo o ambiente interior daquelas maquetes. Acabaram por dar origem a uma breve série com a qual colaborei na rubrica “Espectrografias” do projecto GHOST — Espectralidade: Literatura e Artes (Portugal e Brasil) [IELT — FCSH-UNL].

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MA: Tens sempre uma linha estética muito bem definida no teu trabalho. Como interligas esta tua exposição com o teu trabalho em design, edição, etc? 

JC: Para ser honesto, acho que há pouca relação entre o trabalho apresentado na exposição e outros ofícios em que também me envolvo, como o da edição. Acho até que com este conjunto de desenhos/pinturas tento escapar ao ‘projectual’, em favor de uma experimentação mais descomprometida…

A coerência entre diferentes modos de expressão, por vezes, é excessivamente valorizada. Para mim, pelo menos, ela não é um objectivo ou algo que me preocupe.

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MA: Não assinas as tuas peças (pelo menos à frente). Tens algum motivo específico para não o fazeres?

JC: Visualmente perturba-me a assinatura, mais um signo ali…

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MA: Tens mais exposições em vista? Quais as novidades para breve?

JC: Para já, e nos próximos tempos, espero poder continuar neste diálogo interior/exterior, em pinturas como as maiores que estão na exposição. É como que entrar naqueles espaços e pintar o seu interior, desta vez. Estou a trabalhar nisso, mas ainda lentamente e sem qualquer exposição prevista. Quando exponho, mais do que fechar uma fase ou uma série, reflicto sobre o momento em que me encontro; é mais um modo de poder continuar, isto é, colocar novas perguntas.

Obrigada, João e muito sucesso!

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Gonçalo Almeida

Gonçalo Almeida

“Os dois instrumentos permitem-me abordagens e formas de estar na música distintas, um pelo sentido sensorial mais delicado e acústico, o outro pela forma mais visceral e pesada. É o equilíbrio dos dois que acaba por fazer a minha forma de estar na música e têm como linha condutora o experimentalismo”.

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Foto de Nuno Martins

(Diz)Sonâncias (DS): Estás completamente dentro da cena jazzcore e de improvisação. Fala-nos um pouco do teu percurso e da ida para a Holanda.

Gonçalo Almeida (GA): Os meus primeiros passos na formação musical foram na escola do Hot Club e foi aí que me inciei no estudo do contrabaixo. Seguiram-se anos de estudo da linguagem jazz a par da música clássica, mas foi no departamento de jazz de Roterdão que acabei por ir estudar em 2002/03. Essa acabou por ser a razão que me levou a viver na Holanda, país e cidade onde ainda hoje sou residente.

(DS) Sente-se que o metal está imensamente presente no teu trabalho. Onde e quando surgiu esta influência?

(GA) Desde cedo tive gosto por música, embora o jazz tenha aparecido mais tarde quando decidi ir para o Hot, levava já dos tempos da escola secundária um enorme interesse em música alternativa do metal ao rock progressivo, etc. Foi essa a razão que me levou a pegar no baixo elétrico e ter enorme sastifação a tocar em bandas de garagem e estar constantemente a trocar discos com amigos. Essas raizes e gostos ficaram sempre comigo.

(DS) Achas que Portugal está bem “posicionado” no panorama do jazz europeu (salas, nº de concertos, divulgação e adesão aos concertos e eventos)? Que pontos consideras relevantes no que se faz por cá?

(GA) Eu creio que Portugal está com um ambiente cada vez mais variado, ativo e saudável no que diz respeito ao jazz e à música improvisada. Com público recetivo e com o aparecimento de espaços alternativos, para além das já conhecidas salas, clubes e festivais, a promoverem este tipo de música.

Exemplo disso é a variedade de festivais ao longo do ano por todo o país, com os municípios a apostarem neste tipo de eventos. Seria, contudo, bom que existissem para além dos festivais mais apoios e espaços descentralizados da capital, para que se pudesse criar um circuito mais vasto.

(DS) Falhei o gigs de Ikizukuri e Albatre na SMUP (Parede, Lisboa). Aquele sótão é um dos teus spots de eleição? Qual é a vibe dos concertos ali?

(GA) Nos últimos anos criei um carinho especial pela SMUP, pelo facto de ter lá tocado com variadíssimos projetos e o acolhimento e atenção do público terem sido sempre excecionais. Isso acabou por se ter revelado já em dois discos gravados naquele espaço (The Attic e Multiverse).

Para quem já lá tocou sabe o quanto aquele sótão é íntimo e convida a uma música de concentração máxima. Acho que é o resultado de uma fórmula que envolve espaço, quem o organiza, público e músicos.

(DS) É natural, no panorama em que desenvolves trabalho, os músicos unirem sinergias e criarem de forma livre e espontânea. Há alguns músicos, em particular, com quem sintas maior empatia no momento de criar? Como encaras e interpretas o processo de criação?

(GA) Um dos pontos interessantes na música de improvisação livre é exatamente o facto de muitas vezes ser uma forma de conhecermos o músico e a(s) pessoa(s) com quem tocamos. A espontaneidade faz parte desse diálogo e são sem dúvida essenciais a abertura e a confiança. Adoro reencontrar amigos desta forma e tocar nos mais diversos projetos pela mesma razão.

(DS) A tua procura por novas sonoridades, músicos e projetos determina o teu processo criativo? Quais as tuas motivações para alimentares o processo criativo?

(GA) Gosto de explorar constantemente diferentes constelações musicais, é uma necessidade pessoal e criativa. Interargir com diferentes músicos/instrumentos e procurar sinergias que levem a resultados variados dá-me imenso gozo. É também uma forma de estar constantemente ativo e explorar a música de várias formas, sempre com a experimentação como plano de fundo.

(DS) No panorama musical: Portugal Vs Holanda. Quem ganha?

Empatado até ao final, sem penaltis e com os dois vencedores. Não consigo ver as coisas dessa forma, ambos os ambientes musicais são ricos e têm uma cena própria. É verdade que na Holanda o jazz e a música improvisada têm uma história mais rica e instituida por mais anos, contudo creio que Portugal tem um sentido criativo em geral extremamente rico e especial, que resulta numa qualidade de músicos e projetos de jazz e música improvisada, do melhor que se faz pela Europa na atualidade.

(DS) Baixo Elétrico Vs Contabaixo. A tua eterna paixão recai sobre qual?

(GA) Isto é a pergunta do Ying Yang. Os dois instrumentos permitem-me abordagens e formas de estar na música distintas, um pelo sentido sensorial mais delicado e acústico, o outro pela forma mais visceral e pesada. É o equilíbrio dos dois que acaba por fazer a minha forma de estar na música e têm como linha condutora o experimentalismo. Contudo confesso que o contrabaixo é o instrumento que mais procuro explorar e com o qual sinto um afeto especial.

(DS) Também tens o teu site artalmeida. A pintura é um complemento à música? Consideras importante o cruzamento entre as diversas expressões artísticas? Como encaras esse cruzamento?

(GA) Os processos criativos são até semelhantes, dado que a espontaneidade e a experimentação são em ambas as disciplinas uma linha de condução para o meu trabalho. A pintura acaba por ocupar um espaço mais privado e acontece por períodos, por vezes nos momentos em que estou mais livre da música. Por vezes é um escape a tudo e que utilizo só para mim.

(DS) Fala-nos um pouco deste ano de 2019?

(GA) 2019 tem vindo a ser um ano ativo, com várias tours com diferentes projetos pela Europa fora. Para além dos discos já lançados este ano (Cement Shoes, Multiverse e The Selva) destaque para o acabadissimo de sair, The Attic “Summer Bummer”.

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Hearth – Work and Focus

Hearth – Work and Focus

Five women and a door that persisted not to open. It was after a tiring day of rehearsals that the four members of the Hearth group sat down with me for an informal and elucidative conversation about their work.

My big thanks to the four wonderful musicians that kindly accepted to give me this interview.

Kaja Draksler – Piano

Ada Rave – Tenor Saxophone

Mette Rasmussen – Alto Saxophone

Susana Santos Silva – Trumpet

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DizSonâncias (DS) – How the idea of the project born?

Kaja Draksler (KD) – We did this in October Meeting. It was a meeting with a lot of musicians from different places that happened in Bimhuis in 2016. We could make different groups among the people that came into this meeting. This was one of the groups and we decided to continue it. We kind of started it also with this idea that we will continue it in the future.

DS – Did you play together before that or it was your fist time together?

Susana Santos Silva (SSS) – I played with Kaja for many, many years.

Ada Rave (AR) – I played with Kaja. I met her when we lived in Amsterdam. We were living in the same town. And I met Mette in Amsterdam through Kaja.

DS – You have different music backgrounds. When you start playing together how you describe your vibe?

Mette Rasmussen (MR) – Some years ago I think all of us were taking new footsteps inside improvised. At the time, when we met I think we all felt really fresh and really new because we were all inspiring each other in many different ways and I think along the years this is growing and we are talking much more. That’s why we having this residence in Portalegre because we are talking much more and discussing the aesthetics about the music and where we want to go and what is the meeting point for all of us inside the group.

DS – A project only with women in jazz is quite rare. Do you feel that is a distinguish mark of the quartet?

SSS – No. It was a coincidence. We just wanted to play with each other and it’s a coincidence that we are all women.

It’s not a statement. It’s funny. We have a picture with a kid, we are called Hearth and we are four women.

AR – I think people are very used to, not only in music, see the things in a specific way. I mean, in literature, for example, you know more women through the voice of the men. Maybe words are used to do these things. But we are women so it’s normal to us to have babies, put this kind of names in things. It’s a natural thing to do.

DS – Your formation is unusual – winds and a piano – how do you create your music?

KD – Right know we are working in very concrete ideas but we are probably not use them literally. We are just working on creating a language together through very concrete exercises and then later we want to improvise and this language will be there then. We create a language together and then it stays in our head although we don’t do it consciously. That’s the idea for now but maybe we will even use some of these material on the spot. We are not deciding on it. For now, the idea is that we only improvise with these work in our subconscious but perhaps in the end we will also record something very concrete.

SSS – It’s like studying a language. We studied and then we can improve around it so that becomes our way of communicating. It’s a language we develop together. We are finding a common ground. It´s not only individualities but a band sound.

AR – We talk a lot about the material we brought. We discuss, we play, we try to make it work.

DS – The name Hearth. How it born and what’s the meaning of that?

(They laughed)

SSS – The meeting point of a family, a home. And it also plays a little bit around with the idea of heart which is also like home, the meeting point of people and the warms of a fireplace and Earth as well which is our mother land.

KD – “Her” is also in it.

SSS – I never thought of that, actually.

KD – Also the idea of home. Maybe subconsciously also comes from the fact that none of us live in their home countries. Maybe Mette feels more in home. She is kind of norweginized and anyway Scandinavian has a kind of common behaviour culture. But Mette is never home. She is always on tour. So it’s this thing of searching for home, a common place.

DS – What about surprises for tomorrow (gig in Portalegre JazzFest). Can you talk about what you have in mind?

KD – We want to surprise ourselves.

AR – We want to surprise ourselves because we are not working precisely in what we are going to play. We will improvise.

DS – Next gigs. Do you have it?

SSS – No we don´t have.

AR – We are open to it.

MR – I think the priority right now it´s the music. It´s not so much to get a lot of gigs, it´s the development of the music and not the band. I think the concert tomorrow It’s going to be an important part of this process.

We are together since 2016 and we have probably four concerts a year.

KD – Once the record is out we want to do a little tour to presented it.

SSS – We will record it here (Portalegre).

AR – We are very focused in tomorrow.

MR – We are all in a lot of different projects and, I speak for myself, I feel that some bands and some music develops when you play in concerts. It develops when you are on tour, that’s when it shapes. But I think with this band is something else. It´s not the gigs that makes the music is this process of making the music and the concerts are maybe rarer.

SSS – But if they come I think that at some point we will also do that (develop on the stage). I think that is an important part of any process.

DS – Which expectations do you have to the future of the project?

MR – I think the expectation is what Susana said. In the end we will eternalize the music, the band and the four of us and then we will be on stage developing.

SSS – Maybe in the future we will keep on moving forward and recreating.

DS – No rhythm section?

SSS – I think is more like chamber music kind of band.

MR – That’s the challenge.