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Spectral Evolution

Spectral Evolution | Rafael Toral

Conhecer o percurso de Rafael Toral é mergulhar em 35 anos de música, composição e interpretação no rock, free jazz, eletrónica e ambiente. É silêncio e contemplação, ruído e desconforto. É conhecer em profundidade os caminhos e percursos a que o som nos pode conduzir.

Cruzei-me com o trabalho de Rafael na fase que o mesmo intitula como Terceira fase (a partir de 2017). O disco Jupiter and Beyond (com João Pais Filipe) é um dos discos que mais gosto desta fase de Toral. Como diz no seu site, nesta fase do seu percurso, este disco é mais cru e emocional. E para mim tornou-se percetível que são estes discos mais emocionais que me levam a explorar a carreira de Rafael. Mais tarde escrevi sobre dois lançamentos digitais da Noise Precision Library: Live in Lisbon (with Hilmar Jensson) e Live in Lisbon (with Tatsuya Nakatani and John Edwards). E, em 2023, escrevi sobre o seu Space Quartet e o disco Last Set.

Chegados a 2024, encontramos em Spectral Evolution o destino desta viagem de 35 anos. Um regresso à guitarra elétrica, um disco que deixa em aberto caminhos para diversas viagens. Rafael apresenta-nos a discografia, que nos permite ouvir o seu trabalho e compreender o seu caminho, o seu racional de criação, a forma como Spectral Evolution sintetiza o seu percurso. Este último disco é avassalador.

É profundo, cruza o térreo com o espiritual e pela primeira vez não me levou para outros mundos (atenção que gosto muito de viajar nos outros mundos de Toral). Levou-me numa viagem interior, uma viagem minha (e na verdade dele). Deve existir uma explicação racional para a apurada sensibilidade de Rafael Toral.  De sentidos aguçados ouvimos o nosso eu interior. Revivemos tristezas, refletimos sobre escolhas, ações e decisões. Ouvimos ao longe – fruto da nossa mente – canções que nos embalaram na infância e medos de quem escondido esperava pela noite debaixo da cama. Entramos na igreja pela mão da nossa avó e viramos as costas ao altar num ato ponderado de negação. Este disco é uma lição de psicanálise, de profunda comunhão com o nosso lugar no mundo – pelo menos, foi assim para mim.

É um disco belo e puro. Entrei no comboio sem saber que a viagem, de quarenta e sete minutos, seria tão intensa, com paisagens tão verdejantes, mas também tão negras. É uma viagem sem retorno. Depois de entrarmos tão profundamente no trabalho de Rafael, não mais voltaremos ao ponto inicial. Reconhecemos neste disco o seu percurso de 35 anos. A interligação entre a guitarra e as eletrónicas de sons espaciais, levam-me ao momento em que, há uns anos, procurei conhecer mais aprofundadamente o seu trabalho. Na verdade, aquilo que poderia ser considerado improvável, torna-se harmoniosamente perfeito neste disco. A viagem pelo seu lado mais espacial, composto pelos instrumentos eletrónicos que foi construindo, e os instrumentos clássicos que fazem parte do nosso conhecimento geral.

O que Toral nos propõe – ou o que eu entendo que nos propõe – é que, num momento em que o mundo está tão caótico e perdido, encontremos o nosso lugar. A energia canalizada em sons que o próprio foi descobrindo e trabalhando ao longo de décadas. Mais que um músico, compositor ou produtor, Rafael é um investigador do silêncio, do som e das suas potencialidades.

Já disse que este disco é belo. Acho que ainda não disse que é duro.

A morte faz parte da viagem. A morte de uma parte de nós também acontece nesta obra para depois ascendermos até outra dimensão.

Demorei muito tempo a escrever sobre este disco porque o que me trouxe mexeu profundamente comigo. Inicialmente, mais que uma resenha sobre o disco, nasceu uma introspeção sobre a minha viagem com este disco. Foi preciso voltar a sentar-me, encontrar o caminho certo e reescrever. Nunca tinha escrito algo tão pessoal que se perdesse por completo o foco no que era pretendido: o disco. E até nisso a experiência foi nova e enriquecedora. Nova escuta, nova viagem, reescrever sem perder nadinha da experiência que são estes quarenta e sete minutos.

O percurso musical de Rafael Toral é vasto, rico e consistente. Sinto-me sempre pequenina quando escrevo sobre ele.

Entrei em partes de mim que desconhecia, desci até ao mais profundo, voltando a elevar-me entre a sua guitarra e os seus sons etéreos. Esta viagem é irrepetível e, sem dúvida, que é um disco que percorre de forma exímia os 35 anos de criação de Toral.

Pode ler a entrevista a Rafael Toral neste link.

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Space Quartet | Last Set

Space Quartet | Last Set

Podem ouvir e comprar o disco na página de bandcamp do Rafael Toral.

Numa review a um dos discos do Rafael Toral, escrevi que falhei sempre os seus concertos ao vivo. Este não podia falhar!
Assisti a este quarteto no Out.Fest, a 3 de junho de 2021, e escrevi sobre o concerto. Escrever sobre este disco é reviver o momento, com o distanciamento necessário para o ouvir com mais atenção, ir aos detalhes e reentrar no mundo do Rafael Toral. Ouvir o disco dá-me a liberdade de andar para a frente e para trás, de captar aquele momento em que o Nuno Morão fez um apontamento importante que ao vivo me tinha passado despercebido. Sim, acreditem que o Nuno Morão ao vivo tem destas coisas. Dialoga tão bem que só nos discos me apercebo de coisas absolutamente incríveis. Um dos bateristas que mais gosto de ouvir ao vivo na cena da improvisação.

Este quarteto tem uma energia muito própria e o Toral tem muito peso nesta questão. Entrar no seu mundo é permitirmos que a nossa cabeça embarque numa viagem complexa, com línguas diferentes e que nem sempre dominamos. É aprender sobre expansão e contenção, fluidez e resistência.

Começo a ouvir e mentiria se dissesse que não espero ansiosamente pela entrada das eletrónicas do Rafael Toral. A conversa entre o contrabaixo e o saxofone abrem o disco e começamos lentamente a deixar-nos conduzir. Continuo muito atenta ao contrabaixo do Hugo Antunes, mas hoje presto mais atenção a detalhes do saxofone do Nuno Torres. O Nuno Morão une momentos, interliga estações por onde passamos na viagem deste disco.

A viagem dura 1 hora e leva-me até sítios a que não fui no concerto ao vivo. Entre o térreo e o espacial, nunca nos sentamos descansados à espera do próximo transporte. Nos discos do Toral há sempre uma história de universos paralelos, dimensões diferentes, realidades que se cruzam e interligam.
Neste disco o fio condutor é claro, o diálogo entre os 4 músicos é fluido e não existe nenhum momento em que se percam e deixem de manter a conversa. Não há arrufos, quanto muito um diálogo mais aceso.

Uma pessoa muito próxima disse-me há alguns anos: “Não queiras chegar logo ao resultado final, aprende a aproveitar o processo”. Entre o concerto ao vivo e este disco passaram 2 anos. Agora ouço-o de forma diferente, com o distanciamento certo, e continua a entrar-me pelos ouvidos com a mesma delicadeza e beleza. É como se tivesse acabado de me sentar naquele auditório a 3 de junho de 2021.

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Twelve Bass Tunes | Hernâni Faustino

Twelve Bass Tunes | Hernâni Faustino

Podem ouvir e comprar aqui.

Twelve Bass Tunes é o disco de estreia do Hernâni Faustino a solo.

12 temas, 12 histórias.

Entro em sequência, determinada que este disco a solo do Hernâni me irá fazer ficar rendida. E em madrigal desarma-me. O Hernâni é um músico incrível que faz com que consigamos sentir a profundida do seu contrabaixo e a intensidade das suas respirações.

O fio condutor do disco é harmonioso, divinalmente bem conseguido. O ofício é difícil de descrever. É conturbado, e deixa a porta aberta para o Tríptico da Virgem de Lamego. Esta é uma das melhores malhas deste disco. O deixar soar, o deixar respirar, o ambiente. Quem acompanha o seu percurso sabe a entrega deste músico a cada desafio em que se envolve. Este solo é, talvez, um dos maiores desafios da sua carreira. Sozinho, sem redes nem artifícios, despido, transparente.

É para esta imagem da nudez do músico, da nudez da sua entrega que o Tríptico da Virgem de Lamego me leva. Voltamos à azáfama num modo justo e o meu pensamento deriva para o Sei Miguel. Produtor neste disco, músico exemplar, ouvido afinado e gosto apurado. Não imagino ninguém melhor para estar ao lado do Hernâni neste disco enquanto produtor.

Deixo que o ouvido continue atento. Deixo que o solo siga o seu rumo, sem tentar entender intenções, sem tentar decifrar porquês, sem querer saber a história. Crio a minha própria história. Por vezes mais triste e melancólica, outras mais assertiva e determinada. É uma história construída segundo a segundo, corda a corda. O arco que percorre as cordas é onde mantenho o foco.

Saltito em luar, experimento manter-me sem procurar o que virá a seguir até chegar a EIA EIA. Ritmada e cheia de groove decido olhar para o alinhamento e, talvez pelo nome, espero por com Vénus: o Hernâni fecha o disco com aquela que é, na minha opinião, a melhor malha. Intensa, pesada, sublime e sexy.

Uma linguagem própria, um fio condutor irrepreensível, um disco pelo qual ansiava. Na lista de 2021 sem margem para dúvidas. E a editora é cada vez mais promissora: a Phonogram Unit começa a dar cada vez mais passos interessantes.

Ficha Técnica

released July 23, 2021
Hernâni Faustino / double bass

Recorded (16.01.20) and mixed at Namouche Studios, Lisbon, by Joaquim Monte
Mastered by Simon Wadsworth
All music by Hernâni Faustino
Produced by Sei Miguel
Executive production by Phonogram Unit
Photography : Nuno Martins
Design and artwork : Sofia Faustino

Special thanks to my Family and Fala Mariam

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Solo Acoustic Guitar Improvisations I | Dirk Serries

Solo Acoustic Guitar Improvisations I | Dirk Serries

Podem ouvir e comprar aqui.

Uma Höfner archtop guitar de 1957 nas mãos do Dirk Serries é de nos sentarmos e prestarmos atenção a cada momento em que ele toca naquelas cordas, a cada momento em que nos deixa respirar.

Um solo de guitarra acústica num LP que não nos desilude. Começamos com Axis e em menos de 3 minutos estamos em Grid ─ um dos meus temas de eleição deste disco. Permite-nos escutar em diferentes direções, deixa em aberto o que nos será apresentado nos temas seguintes e mostra-nos a versatilidade do Dirk.

As minhas raízes, para quem ainda não me conhece, vêm do rock. Ao longo dos anos procurei outros géneros, onde o meu ouvido fosse desafiado. Foi na improvisação que esse desafio me deu mais prazer. Foi na improvisação que descobri, de novo, os instrumentos, os seus corpos, as suas sonoridades, tudo o que deles pode provir nas mãos certas.

Nestas mãos que aqui desbravam a guitarra descubro um disco que me faz voltar atrás nas faixas. Procurar pequenas nuances e pormenores. Ouvir a guitarra e a forma como o Dirk interage com ela. A forma como falam connosco em simultâneo, sem se atropelarem. Em Overlap percebemos isso mesmo: como músico e instrumento se entendem, se deixam levar pelo momento. O Dirk passa as mão no corpo, ora mais subtil, ora mais agressivo e ela, a guitarra, mostra-lhe as suas potencialidades, dá-lhe o corpo para que os possamos ouvir em pleno.

Em Kinetic senti-me, mesmo que por poucos segundos, numa dança latina em que nos gingamos, em que seduzimos e somos seduzidos. Começo a deixar-me guiar pelo Dirk. Que a sua Höfner, nua e crua, me deixe ir até 31 de julho de 2020. Até ao momento em que este disco foi gravado no Sunny Side Inc. Studio.

Se pudesse sentava-me frente a frente com o Dirk. Teria muito que lhe perguntar. Talvez tentasse perceber que história lhe passou pela cabeça enquanto dedilhava a guitarra. Sons quentes e sedutores. Rhetoric foi o tema que me fez questionar o que lhe iria na mente, que lugares, pessoas, cheiros e sons o fizeram improvisar desta forma.

Sketch é o tema mais longo deste disco. Seis minutos de dinâmicas, de momentos intensos, de toques subtis, cheio de garra e vontade. Fiquei em plena harmonia com o decorrer dos segundos, senti que caminhava para o fim do disco. Entro em Exertion de rompante. Reconcentro-me.

Fecha-se o disco com Areal, mas não resisti a voltar a Sketch uma última vez antes de parar de ouvir. Voltar a esse tema, é voltar ao resumo do disco. É nessa faixa que temos como que a sinopse de tudo o que já ouvimos e do que está para vir.

Aconselho que ouçam com atenção, que se deixem guiar entre mãos e guitarra. O Dirk entra em 2021 em grande com este LP!

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Monólogos a Dois | Gonçalo Almeida

Monólogos a Dois | Gonçalo Almeida

Podem ouvir e comprar aqui.

Monólogos a Dois é o novo disco a solo do contrabaixista Gonçalo Almeida. Um LP (100 exemplares) editado pela New Wave of Jazz. Partindo do pressuposto que um monólogo é um exercício, por exemplo em teatro, difícil de executar de forma genial, o Gonçalo faz com este monólogo seja fluído, que nos agarre e que escutemos com atenção tudo o que ele tem para nos dizer. É um monólogo que vira diálogo a determinado ponto. O ressoar do corpo do contrabaixo dialoga com ele e connosco.

Um solo de contrabaixo é um desafio. Para ele e para quem o ouve. Não é o instrumento mais fácil de trabalhar a solo. Mas quem tem mão para o dominar obtém resultados como este Monólogos a Dois.

Aos 3 minutos e meio do primeiro tema já me agarrou quando comecei a ouvir ao fundo a subtileza da sua respiração. A agressividade e determinação do arco nas cordas. A história deste monólogo começa a compor-se. Inspira e reencontra-se num ambiente mais calmo e ponderado. E ainda só vamos nos 4 minutos e poucos segundos do primeiro tema. Este tema é o mais longo do disco, aquele em que rapidamente nos é apresentado o melhor do Almeida. Quem acompanha o seu percurso perceberá rapidamente que este solo só podia sair das mãos dele. Algo de muito próprio, que nos leva do ambiente mais apaziguador ao rock numa cave algures entre Lisboa e Budapeste.

O Gonçalo sempre me inspirou a construir narrativas, tanto nos seus discos como nos seus concertos ao vivo. A sua presença complementa o que compõe e executa. No segundo tema já tenho dois personagens e um enredo. Já escrevi um conto com um solo dele (que foi publicado no DizSonâncias há algum tempo), mas este monólogo tem pano para mangas.

O segundo tema leva-nos por pequenos trilhos. São pouco mais de dois minutos, mas sabemos que os trilhos nos levarão a um lugar que não nos irá desiludir.

Rapidamente passo do tema 3 para o 4, talvez pela pressa de perceber o que mais irá acontecer. Tenho vontade de poder escolher o que vai acontecer quando no fim daquele minuto e trinta se ouve aquele estalar. Sim, o Gonçalo consegue aguçar-nos o imaginário e a mente, agarra-nos pelos sentidos.

Talvez por andar mais sensível comece por me emocionar no tema 4. Os graves do contrabaixo, a respiração do Gonçalo, a rispidez e intensidade do que ouço levam-me até sítios menos sorridentes. Trazem até mim a melancolia e a tristeza. E isso não tem absolutamente mal nenhum, pelo contrário. Sentir. É assim que vivo a música. Esta relação empática e visceral que tenho com a música faz com que a cada disco e a cada concerto me deixe levar num turbilhão de emoções e sensações.

Ainda nem vou a meio do disco e já sorri, respirei fundo, chorei, parei, voltei e continuei. No tema 6 consigo finalmente recompor-me. Aqui começa, para mim, o diálogo mais efusivo entre instrumento e músico.

Chegámos a meio do disco, num crescendo contínuo. Anseio que a viagem dure, mas a curiosidade por descobrir como acaba deixa-me irrequieta. A respiração do Gonçalo volta a remeter-me para o quanto o contrabaixo é um instrumento físico, possante, desafiante e encantador. Sim, assumo, sou e serei sempre uma apaixonada pelo contrabaixo.

Entre o tema 7 e o 8 percebemos que o caminho se constrói de pequenos e subtis apontamentos, de deixar o som perdurar no tempo e no espaço. Deixar que flua e ecoe.

Gosto sempre quando um tema me traz sons que associo a quando era criança. No meu imaginário o subir e descer uma escada está presente no tema 9. Era assim que as histórias se construíam na minha mente em criança e que faz com que ainda hoje as escadas sejam um tema recorrente nos meus contos. Isso e a água que corre sempre perto dessas escadas.

Volto à idade adulta logo a seguir. Mantenho a respiração acelerada. Retira-me o fôlego durante 3 minutos e 16. Sim, ele consegue fazer-nos isso. Dúvidas? É ir ouvir.

É nos temas como o décimo primeiro que considero que o Gonçalo é inigualável. O ambiente mais pesado e intenso, os graves vincados e constantes. É exatamente nesse registo que o seu monólogo se intensifica, que tudo se torna mais visual. É quando com enorme facilidade se desenham cenários, numa iluminação quente em fundo negro.

E este é, para mim, O tema deste LP. É tudo o que eu esperava numa malha só. E se o disco já me fez ganhar a noite, este tema já me fez ganhar o início atribulado de 2021. É por temas como este que não se quer perder um gig do Gonçalo quando vem até Portugal (e infelizmente eu tenho perdido muitos).

Num minuto e cinquenta e nove segundos fechamos o Monólogo a Dois. Que disco tão bem conseguido!

Para mim estará nas listas dos melhores de 2021 e ainda agora o ano começou. O trabalho do Gonçalo fascina-me e deixa-me sempre expectante com o que ele irá editar e apresentar a seguir.

Ficha Técnica

Released January 21, 2021

Gonçalo Almeida – Doublebass

Performed & recorded at the Old Church in Oud-Charlois, Rotterdam (The Netherlands) on 11th July 2020.

All music by Gonçalo Almeida.

Recorded & mixed by Gonçalo Almeida.

Mastered at the Sunny Side Inc. Studio, Anderlecht (Belgium).

Gonçalo would like to thank Jaap van Gils, Oud-Charlois Kerk and Dirk Serries.

Sleeve notes : Guy Peters.

Layout : Rutger Zuydervelt

Edition of 100.

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Vento | José Lencastre, Hernâni Faustino e Vasco Furtado

Vento | José Lencastre, Hernâni Faustino e Vasco Furtado

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A Phonogram Unit apareceu e com ela o primeiro disco da editora intitulado Vento. Para quem conhece o José Lencastre, o Hernâni Faustino e o Vasco Furtado, só podia esperar que este disco fosse bom. Para quem não conhece se o ouvir rapidamente quererá acompanhar os seus percursos. Here we go é isso mesmo: um começo empolgante que nos leva até Abstração em que nos deixamos guiar pelo saxofone do Lencastre entre pequenos desvios que se cruzam no nosso caminho. O contrabaixo do Hernâni e os apontamentos do Vasco tornam este tema um excelente candidato a banda sonora de um filme de suspense. Em Test Drive podíamos dizer que cada um vai ao volante em momentos distintos. Sentem-se e ouçam com atenção porque, tal como num carro, os três conduzem de formas diferentes. Ouçam-na três vezes consecutivas e mantenham a atenção em cada músico à vez.

Lencastre com linhas curtas e coesas, Hernâni rápido e cheio de curvas e contracurvas e o Vasco ritmado e de pé metido na embraiagem, sempre pronto a pôr uma acima. Aos nove minutos mudamos de cenário, passamos para pista molhada, escorregadia em que vamos com cuidado até chegarmos destino. Keep Going que para a frente é que é caminho. Mantém-nos na viagem onde esperamos que ao avançar cheguemos a novos caminhos sonoros: Ruína. Neste tema o Vasco, o Hernâni e uma respiração inicial que quase passa despercebida fazem que seja o meu tema de eleição.

Gosto da subtileza, do ruído, do sopro do Lencastre, da envolvência. Traz consigo o frio de qualquer ruína com que nos cruzemos em Sintra. Imagino o anfiteatro da Quinta da Regaleira envolto neste som. Intimo e leve numa noite de brisa gelada em Sintra. Ruína é a queda num momento pacifico e que nos permite assimilar o disco de outra forma. Vento é um sopro constante. O tema que intitula o disco é a forma certa de o fechar. Pequenos saltos de um lado para o outro até ao fim. Curto e grosso!

Nota: Review publicada no zine Mecónio#1 juntamente com o texto escrito durante o concerto de apresentação da Editora Phonogram Unit, na SMUP (podem adquirir o zine por email para (darkowl.shop@gmail.com)

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João Cabrita | Limited Edition Double Vinyl

João Cabrita | Limited Edition Double Vinyl

Podem ouvir aqui.

Cabrita é doce, é quente, é swing e groove. Sim, Cabrita é isso tudo! E para as mentes que divagaram informo que me refiro ao disco. Quanto ao João irei ficar a saber mais, dia 7 de novembro, em direto no Covidarte.

Entramos em Whatever Blues com o João e o Gui (Xutos e Pontapés) num groove daqueles que nos faz mexer as ancas compulsivamente até aos três minutos e vinte e três segundos em que da anca passamos a abanar a cabeça e voltamos rapidamente ao swing, à sensação de quão sexy uma música pode ser. É impossível não mordiscar o lábio.

Ivo Costa (colabora com Cais Sodré Funk Connection) entra em Snake Eyes para dar continuidade à onda. Que bem que se entra neste disco. É daqueles que te faz querer entrar já num spot e ver Cabrita ao vivo.

E sabes que passaste para a malha Afronauts Lament quando o piano do João Gomes (Orelha Negra) marca presença. É inconfundível. E só David Pessoa (Cais Sodré Funk Connection) e Hélio Morais (PAUS e Linda Martini) podiam entrar neste tema. Faz sentido, flui e a linguagem é a mesma. Já dizia o Rui Veloso que “não se ama alguém que não ouve a mesma canção”. Esta teoria deve ser aplicável à química de quem se une para criar. Afronauts Lament tem um lado mais cósmico, que a mim me leva, por incrível que pareça, até Daft Punk. Em Caravan com Legendary Tigerman percebe-se bem como o Cabrita e o Furtado se entendem e deixam fluir. Estamos quase a meio do disco e ainda não parámos de gingar.

“Quem diz a verdade não merece castigo” por isso aqui vai: Dancing with Bullets com o Tó Trips é a minha malha de eleição. Aquele ambiente boémio que tão bem me enche o ouvido. Ora que a melodia quente do saxofone se alia à inconfundível guitarra do Tó Trips com um toque à Tarantino e Coltrane à mistura.

Desesperado com Sandra Baptista e João Marques (Sitiados) é um tema guiado pela batida constante e enternecedora. É uma malha com um crescendo de intensidade. Crescemos com o passar dos segundos. É daquelas que faz o Aguardela sorrir lá de cima com este encontro entre excelentes músicos. Pelo que tenho acompanhado do Cabrita: acredito que guarda boas memórias do tempo dos Sitiados e esta malha é um reencontro muito bem conseguido. Segue-se SOS. Cabrita apazigua-nos e deixa-nos contemplar o que faz sozinho.

Cada convidado traz a sua vibe o que torna cada malha um cruzamento de universos que se complementam. Cabrita traz até este disco a sua incontornável presença no circuito musical português.

Continuo para We Andrea com Selma Uamusse e Sam The Kid. Selma disse ao Diário de Notícias a 11 de agosto deste ano, sobre o confinamento e a sua primeira live online: “Pensei em deixar a música e voltar a ser engenheira”. Ora que o confinamento nos fez pensar muita coisa, mas artistas como a Selma têm um power daqueles. E mais à frente neste texto vamos ver como a quarentena foi bem aproveitada pelo Cabrita. Tenho um respeito muito grande pelo Sam. Entrevistei-o no Sudoeste há alguns anos e, desde aí, que vejo o trabalho dele de forma complexa, elaborada com um conhecimento aprofundado, um homem muito inteligente e um artista de referência. Cabrita, Selma e Sam são um trio bem esgalhado.

Milton Gulli (Cacique 97) entra em Farai com muito funk e reggae alarga o espectro do disco. Mostra-nos os vários universos onde Cabrita se move há tantos anos.

Para fechar o disco temos Never Gonna Give It Up. Terminamos em êxtase. Um disco que nos leva na viagem pelas experiências e influências do João Cabrita. As viagens do seu saxofone em 10 malhas que refletem o seu percurso: Sitiados, Cacique 97, Cool Hipnoise, Cais Sodré Funk Connection, Legendary Tigerman. São 30 anos destas andanças que culminam com Cabrita.

Sim, quero o vinyl. E porquê? Porque além de adorar vinyl e este disco ser altamente, essa edição traz um 10” com as Quarantine Sessions! E falemos dessas sessões que podem ouvir aqui.

Passemos a este disco. A quarentena do João Cabrita foi uma animação. E daí resultou este disco. Ora se há vizinhos que se queixam do barulho que os músicos fazem em isolamento, outros devem sentir-se uns sortudos. Se estas sessões resultam do seu isolamento, não me importava de viver no mesmo prédio que ele. No meu prédio, o mais perto que tenho de artista é o meu vizinho de cima que no auge da sua loucura passa o tempo a gritar com a mãe. Se o fizesse ritmadamente ainda o gravava e samplava, que até no meio da gritaria podemos criar música. É só deixar o ouvido disponível e dar asas à criatividade.

Mas vamos ao que interessa. Da primeira à terceira malha viajo, mas é em Little Big Apple que me apetece dar um passinho de dança pelos anos 20 com um colar de pérolas e uma pena na cabeça. João, diz-me como durante a quarentena a tua vibe foi tão bem disposta? Consigo imaginar o caos Covid lá fora e o Cabrita confortavelmente a gravar malha bem disposta, que nos leva para salões de dança e cigarrilhas. E isso é bom!

Isolation Blues é o continuar da sua história. Ora se por um lado o país fechava, Cabrita abria-nos a sua porta de casa. Como? Neste disco. E que casa tão bem composta.

Fado Cansado ao Amanhecer leva-me até Dead Combo e o encanto que o fado traz, naturalmente, aos nossos ouvidos. Malha que contrasta com todo o disco. Aqui ficamos melancólicos, saudosistas, como só o fado nos faz sentir.

Oiço Marchinha de Santo André e Sunset Delight, mas porra (e desculpem-me o termo) é em Animal de Palco que me cai o queixo. A MALHA!!! Para mim, claro! A onda, a voz, o texto! “Eu sou da rua, a rua que agora se tornou a selva em que podes morrer por um espirro… Uma gotícula que te pode encher ou esvaziar o copo da vida… Está aberta a caça ao animal de palco”. Consigo imaginar isto nas mão de um Luxúria Canibal mas SILK (Cais Sodré Funk Connection) tem uma voz que me arrepia. A dição, o timbre, a sensualidade. E o texto? Altamente!

E assim fecho o que ouço: Parabéns Cabrita! E sim, és animal de palco!

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West | Paulo Vicente

West | Paulo Vicente

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West é um disco fenomenal. É impossível não ficarmos imersos no mundo e na visão do Paulo Vicente. Kings Park mostra-nos que nem só de passarinhos vive o Homem. Entras numa viagem pelo Oeste onde o corpo deixa de ser comandado por ti. Há um estímulo que nos faz querer dançar, mexer, respirar, fechar os olhos e deixar fluir. Entra-nos no sangue, percorre-nos, completa-nos. É excitante, sensual e contagiante. Quando o minimal repetitivo é tão bem trabalhado ─ queres ficar ali, naquele ambiente, sem arredar pé.

Library at home é mais um espaço simples, de contornos que me levam até à infância. A um conto ritmado que ouves ser lido por uma voz quente. Magic Fruits levam-me para o vento do oeste onde caminhas com passo conciso entre universos paralelos. Ai, Paulo Vicente! Que disco tão bom!

Entre May e São Martinho Tapes os ambientes mudam como quando assistes ao pôr do sol sozinho em que o momento apesar de curto é prazeroso e intenso. Um fim de tarde outonal em que o ambiente é, claramente, apaziguador.

O disco fecha com Idyllic Moments e ficas em ânsias para o voltar a ouvir de fio a pavio. Termina com o tema mais longo e nunca tens vontade de carregar no stop.

Soberbo!

O Paulo traz neste disco tudo e nada. Tudo o que precisamos, nada de supérfluo. É um dos meus discos de 2020. Sem qualquer margem para dúvidas.

Nota: Review publicada no zine Mecónio#1 juntamente com entrevista ao Paulo Vicente (podem adquirir o zine por email para darkowl.shop@gmail.com)

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Oni | Roji

Oni | Roji

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Ou é, ou não é! Estranho seria se não fosse. Oni encaixa nos meus ouvidos no primeiro segundo. Entra de rompante, deixa-me rendida e faz-me automaticamente relembrar como é ouvir um disco em que Almeida e Schneider se encontram. Intenso desde o primeiro momento. Rock, jazz, improvisação. Chega-nos tudo de uma assentada só. Voice conta com Riccardo Marogna como convidado. Assumo que não o conheço, poderia aqui fazer bluff e dizer-vos toda a biografia dele e os seus projetos. Não o farei. Façam como eu e visitem o site dele. Maravilhem-se senhoras e senhores. Quem acompanha o que escrevo já sabe: despejar biografias não é comigo. Deixo-vos parte do trabalho de casa feito e aconselho a que aprofundem conhecimento sobre o seu trabalho. É bom, mas bom.

Voltando ao tema Voice. Muitos dirão que é uma chinfrineira, mas não é. Pelo menos para os meus ouvidos. Este disco chegou-me com uma nota: “sabendo que gostas de um som com algum peso”. E não podia estar mais bem anotado. Este som cai-me que nem uma luva. Ouvi-o de fio a pavio. Sem me levantar, sem arredar pé, sem sequer me lembrar de desinfetar as mãos. Transportei-me automaticamente para uma sala de espetáculos onde, sentada de cerveja na mão, saco do meu caderno e escrevo um conto daqueles de jorro quando a música me proporciona tal estado de espírito. Isto é como no sexo, ou vai ou racha. Mas sobre sexo e música irei escrever brevemente.

O exercício hoje não é esse (apesar de saber que irei fazê-lo). Hoje é deixar-vos com sensações e impressões sobre o que excelentes músicos fazem de forma incrível. Passei a Pretense com Giovanni di Domenico no piano, teclas e eletrónicas. E entrei numa autoestrada. Sempre a abrir, com a visão a afunilar e os ouvidos a expandir. Ora se até aqui vim sempre em quinta em The Presence desacelero e meto uma abaixo por pouco tempo porque em milésimas de segundo volto ao registo que tanto gosto. Um minuto e dezasseis segundos em que Almeida e Schneider me levam até às noites de metal em Cacilhas. Na verdade levam-me até uma matiné de metal, que se passou há alguns anos, a um domingo. Bela tarde, essa.

Expulsion e o Riccardo Marogna volta à carga. Chiça, que isto em trio tem ainda mais power. Ora se até aqui eu já me mantinha atenta, a partir daqui só fico mais curiosa com o que aí vem. Alimenta-me a curiosidade de chegar a Oni, malha que intitula o disco.

Clash foi o tema que escolhi para passar no podcast do DizSonâncias (podem ouvir aqui no site). É O tema. Se estivesse no comboio a ir para o trabalho, e conhecendo-me de ginjeira, era Clash em modo repeat (assumo que esta malha está para mim como Asmodea dos Albatre) – Brutal!

Breakpoint abre-nos a cortina para Oni. Voltamos a ter a presença de Giovanni di Domenico. Fechamos o disco com Oni e com vontade de ouvir mais. Não digo com isto que é um disco curto, simplesmente ouvia mais e mais de seguida. Enche-me as medidas, encaixa em mim e nos meus ouvidos.

Acompanhem os projetos de cada um destes músicos e perceberão como tudo faz sentido, como são muito, mas muito bons e como é sempre um prazer ouvir e usufruir da sua música.

Oni é um discaço que deveria entrar pelas casas da malta à descarada! É ouvir e adquirir no bandcamp. Agora, se me permitem, vou voltar à faixa 1, reouvir e parar de escrever.

Ficha Técnica

released September 7, 2020

Gonçalo Almeida – Bass, loops & electronics
Jörg A. Schneider – Drums *
Riccardo Marogna – Bass clarinet, tenor sax & electronics **
Giovanni di Domenico – Piano, keyboards & electronics

Mixed by Ralf J.Rock at Loundry Room, Hückelhoven
Mastered by Marlon Wolterink at White Noise Studio, Winterswijk
Photo by Pedro dos Reis

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Flow | Sphere²

Flow | Sphere²

Podem ouvir aqui.

Descobri a MiMi Records há pouco tempo. Sim, eu sei. Devia ter vergonha de dizer isto, mas não tenho. Mais vale tarde do que nunca. E, caramba (para não dizer outra coisa), estou rendida!

“Flow” de Sphere² mexe com a sensualidade, o desejo, as entranhas, as ancas e a líbido. Sim, é isto tudo e mais uns pormenores.

“Ether” tem uns gravões que nos fazem encostar as costas à parede e o peito salta-nos de tanta intensidade. Deixa-te escorregar por essa parede e usufruir. Liberta-te. Essa é a palavra de ordem deste disco – liberta-te!

E se és daqueles que precisa de demasiado tempo para atingir o clímax, garanto-te que com “Flux” chegas lá em menos de sete minutos. Não há como não te transportares para pensamentos pecaminosos. Eu ajudo-te: Fecha os olhos, imagina-te numa sala em que a luz negra impera, onde um perfume quente te guia. Agora deita-te nos lençóis de seda pretos e vê o teu reflexo nos olhos de quem está contigo. Ao sabor de “Flux” deixa que o impulso te guie. Respira. Deixa-te levar. Quando menos esperas um pequeno strob confunde-te os sentidos. E nisto passaram três minutos e treze segundos. Passa para o beijo, intenso e demorado. E continua assim. Garanto-te que sete minutos com esta banda sonora são suficientes.

“Drift” é mesmo drift. É daqueles temas em que chegas dos zero aos cem em segundo e meio. Mantém-te ligado ao disco. Não páras a mente um único momento. E eu que nem sou a maior aficionada de música eletrónica começo a aumentar o volume à bruta. A minha sala tornou-se, efetivamente, uma pista de dança!

E terminas com “Space Boat” que te confunde entre esquerda e direita, direita e esquerda. “Space Boat” e “Flux” são, para mim, os temas deste disco!

Um disco intenso, mexido, sexual e que já faz parte da minha lista de 2020! Que vinte e três minutos tão bons. MiMi Records é para manter na minha lista de editoras a acompanhar!