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Nós em nós | Rosane Nunes

Nós em nós | Rosane Nunes

Irei fugir ao pequeno texto introdutório sobre como a Rosane Nunes se cruzou comigo e entrou de rompante na minha vida (esse texto é mais longo que o habitual e por isso remeto-o para o fim desta resenha). 

Nós em nós chegou às minhas mãos este Verão e li-o de uma assentada. Entretanto entrou a silly season e deixei a escrita da resenha para o final do ano. Esta última resenha de 2023 não é aleatória. Este livro é uma descoberta constante de nós, do que nos liga, do outro, dos laços e das amarras. Desconhecia (infelizmente) a escrita da Rosane. O seu trabalho como editora sei (por experiência própria) que é muito bom, mas a sua escrita deu-me a conhecer a Rosane com outra profundidade.

Nós em nós é prosa e poesia. Mexe connosco: quer queiramos, quer não. O livro está dividido em 5 partes: Ossos; Nós em nós; Desconcertos; Fábulas e Recados. Cada parte tem vários pequenos textos, sendo que na parte Recados temos vários poemas. 

Na primeira parte, Ossos, o primeiro texto – Cães, foi o que espoletou aquela vontade incontrolável de continuar a ler o livro de seguida. 

Na segunda parte encontrei no texto Azeitona um nó importante para mim – o nó do amor infinito. Em Desconcertos, a Língua fez-me rir, e nas Fábulas o texto Paco é uma história sobre os nós familiares.  A cada texto um nó novo, uma ligação, um sentido. Quando chegamos a Recados encontramos uma nova Rosane. E é em Oi que a paginação faz as suas maravilhas com o poema. Não vou estragar a vossa leitura e por isso não coloco aqui o poema. 

As pequenas histórias estão muito bem escritas, levam-nos até aos lugares, às personagens, a querer fazer parte. Assumo que existem termos de português do brasil que tive de ir pesquisar. À maioria cheguei lá pelo contexto, mas uma ou outra palavra tive de ir até ao google. Adorei passar a conhecer a palavra “fuxicar” e remexer as palavras que o Brasil tem. 

Um livro intenso que aconselho que faça parte da vossa lista de leituras para 2024. A escrita da Rosane é deliciosa!

O tal pequeno texto introdutório…

A vida académica veio tarde. Fiz a licenciatura já adulta e só quando cheguei à idade de ter juízo é que fui para o mestrado. Levei o meu tempo, amadureci e tomei as decisões naquele que considero ter sido o momento certo para mim. A Rosane estava sentada numa sala de aula da FCSH, entrei e penso termos cruzado olhares (talvez esta parte tenha sido apenas fantasiada por mim). Sei, hoje, que as suas expectativas eram similares às minhas (a idade também nos traz destas coisas: expectativas elevadas, mas pés na terra).

Rapidamente trocámos impressões, rimos, criticámos e elogiámos textos, pessoas, entre outras coisas mais pessoais. 

Admirei de perto o seu profissionalismo, a sua vontade de mostrar o trabalho dos outros (com a sua editora Raíz, atual Cambucá), vi como executava os seus trabalhos e como falava apaixonadamente sobre edição e editoras. 

Nunca, até agora, tinha lido textos da Rosane, mas ela leu-me e deu-me muitas dicas e diretrizes. Foi a primeira editora que me convidou para escrever um conto e publicá-lo. Riu com os meus Devaneios Menstruados e incentivou-me a continuar a escrever. Passou-me a ideia de editar os Devaneios e comecei rapidamente a sonhar. É um dos efeitos que a Rosane tem nas pessoas. Apresentou-me o Juva Batella, mostrou-me pequenos pormenores do seu Brasil e da sua preocupação com os mais pequenos.

Ler este livro foi ver a Rosane de outra forma, dona de uma garra incrível e uma escrita forte e intensa. 

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Kramp | María José Ferrada

Kramp | María José Ferrada

Este livro está, neste momento, no primeiro lugar do meu top de 2023! 

Li-o numa manhã, da semana passada. Acordei eram 5h30, indisposta e entre o sono que não regressava e o silêncio da minha casa, decidi abrir o Kramp. Encomendei-o em julho, mas ouvi falar dele pela primeira vez a 3 de junho, na Feira do Livro de Lisboa, na apresentação da chancela Questão Pentagonal. Corri muito nesse dia, cheguei atrasada, mas sabia que ia valer a pena. A Antena 2 esteve por lá e podem ouvir a apresentação da Questão Pentagonal no site da RTP.

Esta chancela, do Grupo Narrativa, foi criada pelo Afonso Cruz e traz até nós traduções de obras desconhecidas, até agora, em Portugal. 

Quem me conhece sabe que gosto muito da escrita do Afonso e não é de estranhar a minha curiosidade sobre o que ele nos daria a conhecer com a Questão Pentagonal.

Kramp, de María José Ferrada e tradução de Afonso Cruz, é um livro que não nos deixa fazer uma pausa. Assim que iniciamos a leitura não há volta a dar: é para ler de seguida nem que para isso se tenham de esconder algures em vossa casa para que ninguém vos incomode. 

D, pai de M, é um caixeiro-viajante que acredita que “toda a vida tem a sua alunagem”. Vende pregos, serrotes, martelos e olhos mágicos da marca Kramp e tem como companheira de trabalho a filha, M. Partilham visões, lições e cigarros. No capítulo IV, M mostra-nos a sua classificação das coisas e acreditem que não vão conseguir parar de ler.

A lucidez de M sobre a vida é incrível e a forma como esta lucidez é conseguida na escrita de María José Ferrada é maravilhosa. M tem mãe e tem D (que será pai nas últimas páginas do livro). Não quero estragar a leitura, mas estes pormenores na escrita do livro tornam-no delicioso e terei de o reler porque a isso me sinto compelida pelo Grande Carpinteiro (criador do Mundo ao olhos de M). A forma como M explica o mundo e o seu funcionamento a partir dos produtos Kramp é genial.

Todas as personagens entram subtilmente, com descrições tão bem conseguidas que nos fazem querer descobrir mais sobre S, F, E, C e todos os outros.

As lições de vida que um único parafuso nos traz, pequenos detalhes que vamos lendo e que se revelam gigantes quando menos esperamos, e esta vontade louca que tenho em contar-vos cada frase incrível que li, que me agarrou, que me ensinou a olhar o outro de várias perspetivas nesta história. Este livro põe-nos no papel de mãe, de pai, de amiga, de criança e de adulto. Dá-nos tanto e tão rápido.

Com a escrita de María José Ferrada espreitei silenciosamente pelo olho mágico da minha porta e vivi a história de M como se fosse minha.

Com este livro a autora recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte, o Prémio Melhores Obras Literárias do Ministério das Culturas, das Artes e do Património e o Prémio Municipal de Literatura de Santiago.

Que bela escolha, Afonso, para começares a Questão Pentagonal. O próximo na lista para encomendar e ler é Não deixes que uma boa notícia te estrague o dia (aforismos), de Ramón Eder. Tenho a certeza que não me irá desiludir.

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Ana Bárbara Pedrosa | Palavra do Senhor e Amor Estragado

Ana Bárbara Pedrosa | Palavra do Senhor e Amor Estragado

Dois livros da Ana Bárbara Pedrosa, editados pela Bertrand Editora e que aconselho vivamente.

Review Palavra do Senhor

Esta review está para ser escrita há 2 anos. Vergonhoso da minha parte. Li o livro, adorei, entrevistei a Ana Bárbara para o Covidarte e nunca escrevi o que queria ter escrito na altura. Foi com este livro que conheci a escrita da Ana Bárbara, que me agarrou do início ao fim do livro. 

Espero aguçar-vos a curiosidade e aconselho a quem nunca leu nada da autora que comece por este.

Deus Nosso Senhor decidiu ir até ao psicanalista. Finalmente! O psicanalista somos nós 一 os leitores. Interessante como me senti parte ativa deste livro.

Deus é sádico, retira prazer do sofrimento alheio, comanda o mundo por trilhos de caos e paz. Brinca e diverte-se com as nossas vidinhas. É assim que se entretém connosco desde que criou este mundo que experienciamos 365 dias por ano (366 em anos bissextos). Eu disse “desde que criou este mundo”? É o efeito deste livro… Vivemos intensamente a história e depois escrevemos estas barbaridades.

Na verdade, segundo o próprio narrador deste livro “Levam à letra coisas de que já me arrependi, que não me dizem nada, que improvisei na altura. Também eu cresci, tornei-me num Deus melhor, como um rapaz que se faz homem. Hoje o que quero para o mundo é outra coisa. Não me interessam as trevas nem as vinganças e as guerras causam-me asco”. Estamos na página 13 e a autora já colocou Deus a mentir (é só a minha modesta opinião). 

Foi também com este livro que percebi que falho ao cuidar de mim e o grande motivo de Adão ter aterrado num jardim (percebi assim as duas coisas, duma vez):: “E já se sabe como é: para saber se sabemos cuidar de nós, primeiro cuidamos de uma planta. Por isso pus um homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”. 

Este livro ofereceu-me uma certa terapia, muitas gargalhadas e uma leitura a uma velocidade incrível. Não há palavras a mais, nem a menos. Tudo está na medida certa. 

Passagens como o Adão que já não pode ouvir a Eva ou esta sobre Caim “Talvez a culpa tenha sido minha por não lhes apontar o caminho. Afinal, fui eu quem provocou Caim e deixou que a sua espécie se reproduzisse em cima de um homicídio”, mostram que Deus precisa mesmo de acompanhamento psiquiátrico. 

Claro que o amor que nutria por Maria também é assunto. “Quanto a Maria, não foi sol de pouca dura. Quem ama odeia, e por isso odiei-a muitas vezes, durante anos e até durante séculos. Não foi fácil, mas pelo menos pus o mundo a dizer que o filho é nosso e, se ninguém a imagina na cama com José, muito menos sabem do affair com Gabriel”.

Sou fã deste Deus! Também eu nutro amor ódio por ele. A forma como conta a sua vida neste divã é incrível.  Eu enquanto o ouço falar nesta história reforço opiniões que já tinha sobre a teoria de ter sido ele a criar o Mundo.

O conhecimento que a Ana Bárbara tem da Bíblia é impressionante. Eu não o tenho, nunca a li, mas ao ler este livro assumo que quero ler a bíblia. Acho que deve ser um desafio interessante.

A Ana Bárbara Pedrosa ainda vai dar muito que falar enquanto escritora. Este é o seu segundo romance (ainda não li o primeiro, Lisboa, Chão Sagrado, que já está na minha lista para encomendar). Foi o livro certo para a conhecer enquanto escritora: tem um humor requintado, uma escrita fluida e cativante e um ritmo incrível.

Review Amor Estragado

“Matei a minha mulher. Não fiz de propósito, mas é daquelas coisas que, depois de feitas, já não deixam volta a dar.” 一 assim começa o novo livro da Ana Bárbara Pedrosa. Final anunciado e muito para ser contado. Preparem-se para coisas duras de ler, fazer uma visita à triste realidade da violência doméstica e dar um pulinho até ao mundo da estupidez humana. Tudo em 200 páginas de escrita real, sem rodeios e com a voz distinta da Ana Bárbara. 

Temas como: a deterioração das relações familiares; o desafio entre fazer o que é certo ou proteger aqueles que partilham connosco laços de sangue e a imagem estereotipada que a maioria de nós tem dos agressores.

É um livro escrito num tom bruto, com momentos muito agressivos, e que nos conquista pela crueza da escrita e dureza da mensagem que passa. 

O primeiro romance que li da autora é completamente diferente e não sinto que possa estabelecer comparações. Talvez frisar que a Ana Bárbara tem a facilidade de nos fazer mergulhar em temas distintos e navegar entre o humor e a brutalidade como peixe na água.

Entre o Manel (agressor) e o Zé (o seu irmão mais velho) vamos ouvindo perspetivas diferentes da história de vida partilhada e dos supostos motivos que levaram ao homicídio da Ema. São traçadas as personalidades e as visões que têm um dos outros.

“O Manel achou durante demasiado tempo que lhe bastava ser irmão, que não tinha de provar nada, que nem precisava de acertar. Que nós eramos a rede do trapézio para a maldade. (…) Mesmo depois de a matar, nunca lhe passou pela cabeça que nós nos pudéssemos ter perguntado o que é que ela veria nele”. É a visão do Zé que mais me agarra à leitura e é este personagem que assume, para mim, um papel fundamental na narrativa. 

Uma experiência de leitura muito diferente do seu anterior romance, que nos faz refletir sobre uma série de questões sociais, económicas e culturais. 

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Rui Zink | A Instalação do Medo

Rui Zink | A Instalação do Medo

Nem sempre sei por onde começar. Talvez pela demora, ou então pelo momento em que finalmente peguei no livro e decidi que ia ser de empreitada.

Tenho A Instalação do Medo, de Rui Zink, desde 16 de junho de 2021. Decidi pegar nele e lê-lo “a sério” na última semana de julho de 2022. Sentada à sombra de mini na mão.

O Rui consegue que qualquer um de nós mantenha o sorriso no rosto enquanto percebe que vive, boa parte do tempo, subjugado ao medo. Em alguns momentos do livro senti-me verdadeiramente tola, mas atenção: tola no bom sentido se é que tal coisa existe.

A minha primeira página dobrada é a 40. E porquê? Porque me começo a rever a partir dessa página. O terror do primeiro dia de escola. O medo, a ansiedade, a inquietação. E no dia em que escrevo isto ainda me recordo do choro incontrolável no meu primeiro dia de escola. Escola essa que agora é do outro lado da rua onde vivo e que me parece muito mais pequena que há 30 anos atrás. Cá está a tal tolice que há pouco vos falava.

“As crianças não compreendem a crueldade dos pais (…) Mas há uma violência, um calafrio, uma traição, um trauma (…)”.

Fiquei rapidamente agarrada às páginas. Tem tanto de Rui Zink dentro deste livro. Já fui aluna dele e passagens como “A senhora sabe o que é um soneto, não sabe? (…) Um soneto é uma forma poética de catorze versos, criada no Renascimento (…)”, é como voltar às aulas dele em que damos uma gargalhada e logo a seguir estamos a aprender mais qualquer coisa, assim como quem nem dá por ela.

Ri-me muito — sim, sou dessas que ri destas coisas — com o facto de me aperceber com a leitura que sou demasiadas vezes dominada pelo medo e na verdade nem me apercebia assim tanto que vivia debaixo desta instalação constante.

O livro tem os apontamentos gráficos nos sítios certos. Apontamentos no texto que nos arrancam sorrisos matreiros e nos ajudam à leitura: “É estranho, agora que o Sousa parece falar em itálico: — Provavelmente vamos ter de sair da moeda única”.

Na página 114 soltei a verdadeira gargalhada. Comparar velhos a pombos e reduzir os velhos à posição que ocupam na atual sociedade. Só dão trabalho, despesa e “ao contrário dos pombos, nem para cagar uma estátua servem”. Velhos e crianças são dois pontos difíceis neste país. Onde os pôr quando estamos ocupados a ganhar uma ninharia nas 40 horas semanais de trabalho? O Estado não tem lares, nem creches, nem apoio suficientes para os nossos pais, nem para os nossos filhos. Mas isto agora também não interessa nada.

Continuando no livro.

Esta reedição teve alguma reescrita e “Oito mil milhões de humanos sobre a terra. Obviamente, algum tinha de acabar por comer um pangolim” deve ser um acrescento à edição de 2012 (não li essa edição). Se existiu momento em que a malta recebeu de porta escancarada a instalação do medo foi com a pandemia. Eu sei que recebi e ainda hoje penso em como os técnicos da instalação foram tão bons profissionais.

Numa próxima reedição virá uma nota sobre a varíola dos macacos ou outra ameaça qualquer que nos irá atormentar em breve, ou talvez não (a tormenta vai lá estar, o Rui é que pode não escrever sobre ela).

Nesta edição de 2021 a verdadeira tormenta está mesmo bem representada e o medo continua atual — os Mercados.

Gostei verdadeiramente deste livro de Rui Zink. Acho que daria uma excelente peça de teatro, mas isso ele já sabe ou não fosse ele quem o escreveu.

O ritmo de leitura é incrível, os diálogos em nada são monótonos e o humor é refinado e roça o sádico. Que mais se pode querer para este início de setembro?

Aproveitem que o autor vai estar este domingo, 4 de setembro, às 17h, no Pavilhão da Porto Editora, na Feira do Livro de Lisboa, em sessão autógrafos. Vão, sem medos!

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Junichirō Tanizaki | Naomi

Junichirō Tanizaki | Naomi

Obsessão, paixão e ilusão. Romance com descrições bem ao estilo de Junichirō Tanizaki. Naomi.

Pele branca, pés fascinantes e uma sensualidade atroz. Esta é a mulher que enfeitiça Jōji.

Jōji tem 28 anos quando se cruza com Naomi de apenas 15. O seu objetivo? Ocidentalizar Naomi e torná-la a mulher perfeita. Não olha a despesas para atingir os fins e é ridicularizado durante a maior parte do processo.

Usado, gozado e humilhado. É assim que vejo Jōji. É assim que o interpreto.

Não poderia escrever sobre este livro sem concordar que “quem vê caras não vê corações”. A pureza da pele branca de Naomi não reflete a sua verdadeira essência.

As descrições dos espaços e dos personagens são fluídas e apesar de regulares e longas não cortam, de forma alguma, o ritmo de leitura. Ansiei diversas vezes pelo parágrafo seguinte, pela próxima página, pelo próximo pensamento desviante do autor.

Na história, as danças de salão, que floresceram no Japão após a I Guerra Mundial, assumem um papel de destaque na descrição de costumes ocidentais. A dança, a sensualidade e a ostentação num corropio de palavras.

Ao longo do romance é visível a obsessão de Jōji com os pés de Naomi. A sua atração por Naomi e a forma como o corpo de menina se transforma num esbelto corpo de mulher é um tema recorrente.

O enredo de Naomi leva-nos, por vezes, para o lado depravado da mente de Jōji. Tem passagens duras e sentimentos como a raiva são retratados em frases simples e pequenas: “O que estás fazer? Humilhas-me! Relaxada! Vadia! Puta!”. A imoralidade é retratada pelo autor de forma bruta e direta.

O final não é surpreendente, mas é triste e transporta-nos para a fragilidade humana e a manipulação do outro.

Sem dúvida que a leitura de Naomi flui com maior facilidade que a de Diário de um Velho Louco.

Pontos em comum: a mente arisca e sexual de Junichirō Tanizaki. Sobre o autor (parte da nota retirada do livro): Tanizaki nasceu em Tóquio, em 1886. Fez parte da sua educação as idas regulares ao teatro. Estudou Literatura Japonesa em Tóquio e acabou por ser expulso da Universidade devido à vida boémia que levava. Casou-se, em 1915, com uma antiga gueixa e esteve envolvido num triângulo amoroso com Satô Haruo, um escritor seu amigo.

Separou-se e casou-se mais três vezes. Sempre com mulheres mais novas que ele.

Naomi foi escrito em 1923 e foi o seu primeiro romance importante. Uma obra que vale a pena ler e reler. Tanizaki faleceu a 30 de julho de 1965.

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Junichirō Tanizaki | Diário de um Velho Louco

Junichirō Tanizaki | Diário de um Velho Louco

Dor, obsessão, depravação e sofrimento. Tudo isto com um humor requintado e ao estilo de Junichirō Tanizaki. Utsugi – setenta e sete anos. É este o nome e a idade do velho louco de Junichirō Tanizaki. Utsugi escreve no seu diário com uma frequência obsessiva. As terríveis dores na mão não toldam os seus pensamentos. Pensa na sua própria morte com o mesmo ritmo que planeia o seu descanso final. Planeia o seu descanso final com o mesmo grau de depravação com que pensa na sua nora.

A degradação física acontece a um ritmo rápido e as suas fantasias sexuais são cada vez mais intensas. Talvez para compensar a quebra de vigor que acompanha a velhice. A sua nora, Satsuko, excita-o ao ponto de o matar. As descrições dos momentos são intensas e levam-nos até ao pensamento mais íntimo de Utsugi. Acompanhar o que escreve no diário é acompanhar uma mente ativa num corpo sem saúde. É perceber que na velhice o desejo mantém-se apesar do corpo não corresponder. A imoralidade é retratada pelo autor de forma delicada e divertida.

O início da leitura é difícil. Os nomes dos personagens são japoneses e não nos são familiares, mas com o passar das páginas os nomes tornam-se parte do texto e a leitura é, gradualmente, mais tranquila. As tradições japonesas e as referências ao teatro Kabuki são uma constante e aguçam-nos o interesse pela cultura japonesa.

O final não foi o esperado e o impacto de toda a história, na minha opinião, perde-se, mas é, sem dúvida, um livro inesquecível. Sobre o autor (parte da nota retirada do livro): Tanizaki nasceu em Tóquio, em 1886. Fez parte da sua educação as idas regulares ao teatro. Estudou Literatura Japonesa em Tóquio e acabou por ser expulso da Universidade devido à vida boémia que levava. Casou-se, em 1915, com uma antiga gueixa e esteve envolvido num triângulo amoroso com Satô Haruo, um escritor seu amigo.

Separou-se e casou-se mais três vezes. Sempre com mulheres mais novas que ele.

Tanizaki faleceu a 30 de julho de 1965.

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Afonso Cruz | O vício dos livros

Afonso Cruz | O vício dos livros

Para quem acompanha o que o Afonso Cruz escreve, rapidamente compreenderá a essência deste livro.

A ilustração da capa (e conheço algumas das interpretações dadas por alguns conhecidos meus) é o meu ponto de partida. Para mim é representativa das memórias e vivências do passado, da reflexão sobre o presente e os olhos postos no que o futuro nos poderá reservar. Assim nascem as histórias. Continuo sem saber se terá sido esse o intuito do autor (e já o ouvi falar sobre este livro em pelo menos 3 circunstâncias), mas esta é a minha interpretação. Talvez daqui a uns anos olhe para esta capa e veja algo totalmente diferente. Veremos.

Antes de passar ao conteúdo existem outras duas coisas que me agarram a este livro: as cores e o cheiro do papel. Sim, para mim estes são dois dos pontos (além do conteúdo e do gosto que tenho pela leitura) que alimentam o meu vício dos livros.

Gosto da cor, mas gosto particularmente do cheiro dos livros. Os novos têm o cheiro peculiar do papel atual, do tipo de impressão, da colagem. Os velhos têm o papel usado, folheado, o cheiro por vezes a bafio. Acho que O vício dos livros será um daqueles livros que irá envelhecer bem. Não sei se quem me lê compreenderá o que quero dizer com isto de um livro envelhecer bem, mas em poucas palavras é o mesmo que se passa com qualquer um de nós. Ficamos velhos, ganhamos um determinado cheiro característico da idade, somos caixinhas de histórias. Assim são os livros e este ao envelhecer manterá intactas as histórias de quem se cruzou, em determinado espaço e tempo, com o Afonso, e apenas mudará o cheiro que o leitor dá a essas histórias. Neste momento o cheiro que lhe dou é novo e fresco.

Se a escrita reflete o seu escritor, o Afonso tem tanto de simples como de complexo. A forma aparentemente simples com que escreve este livro é, na verdade, de uma grande complexidade. O difícil é fazer parecer que se escreve com uma perna às costas, quando se tivermos um pouco de atenção percebemos a quantidade de reflexões e conhecimento que dão vida a cada história. Agarra-nos e quando damos por ela terminámos o livro.

Existe um ponto que faz com que o Afonso me faça ficar agarrada à leitura deste livro: o sentido de humor. Quando lemos e vamos rindo e sorrindo sabemos que um dos exercícios mais difíceis de escrita foi conseguido — passar para o papel o sentido de humor.

O Afonso Cruz viaja, conhece, lê, escreve, observa e absorve. No fim apresenta-nos, de forma deliciosa, as histórias que experienciou.

O vício dos livros é, também, para quem não tem o vício dos livros. É um livro que apresenta à pessoa que não tem tempo para ler os mundos que perde ao não ler. Logo é um livro que mesmo a pessoa que não tem tempo para ler deverá ler. A leitura é rápida e não precisa de muito tempo para o fazer. Basta que quando se estica no sofá não ligue a televisão e utilize duas horas do seu tempo a vislumbrar o que um livro lhe pode trazer: ligações, relações, histórias, paixões e saber.

“Um poeta, quando escreve um poema e levanta a folha onde o escreveu, descobre uma infindável pilha de poemas onde foi escrita toda a poesia que precedeu o seu poema, e ao pousar essa mesma folha verá que já contém o peso de incontáveis poemas escritos sobre aquele que acabou de escrever”.

Este livro “bateu-me”. Talvez porque avivou algumas das minhas memórias, histórias e até fragilidades. A voz que acompanha cada texto é diferente na minha cabeça. É a voz que dou às pessoas com que o Afonso Cruz se cruzou. Imagino-as e ele nem sequer as descreve em profundidade.

Mas, imagino-as.

Na verdade considero que o Afonso Cruz é viciado em sítios, pessoas, paisagens, cheiros, sons. E é isso que nos vicia nos livros.

O vício dos livros não são apenas histórias de vida do Afonso Cruz, são também factos sobre a literatura e as reflexões do autor sobre esses factos. São disso exemplo: “O poeta que foi assassinado pelos próprios livros” e “Bibliotecas”. Além de viajarmos, aprendemos.

Sim, é um dos livros que irei reler quando o papel já tiver aquele cheiro característico da idade. Mais um para o meu vício.

Nota: nesta altura interrogo-me (coisa que me acontece sempre que escrevo sobre música e livros) se a minha interpretação do que li e/ou ouvi vai ao encontro da intenção do autor. Na verdade esta nota não acrescenta nada, mas gosto de pensar nisto.

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Nuno Mangas-Viegas | A Noite de Ferros Feita e Súbito Silente

Nuno Mangas-Viegas | A Noite de Ferros Feita e Súbito Silente

Decidi que seria com o trabalho do Nuno Mangas-Viegas que iria iniciar o “Livros aos meus pés”. Neste primeiro texto irei dar-vos a conhecer dois livros que devorei em pouco tempo.

Que o Nuno me aguça a vontade de entrar no mundo dele, já é do conhecimento público. Cruzei-me com ele em 2020 no mundo digital. Ainda eu não sabia que ele era grande amigo de um amigo meu e já lhe seguia as pisadas. Engraçado dizer “de um amigo meu” quando na verdade esse amigo meu também se tornou amigo pelo mundo digital e só mais tarde presencialmente (culpa do Covidarte e por sua vez da pandemia). Mas vamos lá ao que interessa.

O Nuno esteve sempre à distância de um clique. Comecei por estar atenta ao seu trabalho com fotografia e comentei aqui em casa que achava ser um excelente convidado para uma exposição no Covidarte. E assim foi.

Quis a nossa empatia e as pessoas que nos rodeiam (avé João Sousa) que os nosso caminhos se voltassem a cruzar. Juntos no disco “Árvore” do João Sousa em que dou letra e voz ao “Fruto” e o Nuno é autor das fotos e da conceptualização do disco.

Voltemos ao motivo deste texto: os livros do Nuno Mangas-Viegas.

Os dois livros são edição de autor e quem me conhece sabe o quanto admiro, respeito e apoio quem faz as suas próprias edições. Escreveu-me o Nuno que a ideia base do seu último livro — Súbito Silente — surgiu da exposição no Covidarte. Após a leitura do livro, a sensação que tenho é a de dever cumprido, mas já lá vamos. Antes de passar ao Súbito Silente tenho de vos falar sobre A Noite de Ferros Feita.

Recebi este primeiro livro do Nuno, em 2020, como forma de me mostrar a sua empatia e agradecimento. Enviei-lhe um zine Mecónio e retribuí o carinho.

E em pouco tempo recebi fotografias do zine na praia, com a imagem de marca do Mangas-Viegas — as tenazes (aconselho-vos a seguirem a página o_paraquedas_de_icaro para perceberem do que falo).

Li A Noite de Ferros Feita de uma assentada. A poesia do Nuno agarra-nos, faz-nos pensar, querer ler mais.

“Não recordo se os ossos ou os frios lábios,

se os postigos e a louca sedução dos candeeiros

sobre o álcool das noites a sul,

ou mesmo se a chuva sobre os pianos da estação,

mas algo me escreveu no corpo

que a ordem é peregrina do caos.”

Entrei no Súbito Silente, em 2021, com as expectativas elevadas. E não me desiludi. É envolvente, carnal, real.

Se gostava do primeiro livro, adoro o segundo. Mais intenso, com frases que geram imagens fortes. Identifico-me com as palavras, com a cadência, com os sons.

“Perfumada de canela

chegavas fria aos pomares da manhã.

O teu corpo dançava a música

da chuva e dos caminhos.”

Para quem não conhece os livros do Nuno, e ao reler este texto, sinto que o que escrevo não lhe faz jus. Fica tanto por dizer. Mas nada mehor, para conhecerem o seu trabalho, que encomendarem os vossos exemplares por mensagem nas redes sociais do Nuno Mangas Viegas.

Fico sempre a pensar no dia em que uma editora irá deitar a mão ao Nuno, aos seus poemas e às suas fotografias. Já era altura. Eu já o tenho garantido no próximo zine Mecónio (sim, já devia estar impresso e a circular, mas a vida tem destes atrasos).

Fica a dica.