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The Selva | Festival Causa Efeito

The Selva | Festival Causa Efeito

Festival Causa Efeito | 30 de junho de 2023 | Texto que engloba factos reais e um pequeno conto que escrevi enquanto ouvia o concerto | Fotos do Nuno Martins

É sempre intimista e envolto em momentos de redenção. O Ricardo Jacinto, o Nuno Morão e o Gonçalo Almeida são três músicos de referência na improvisação nacional. The Selva praticam um exercício complexo e incrivel de contenção que se vai dissolvendo ao longo de uma história que nos prende ao concerto. Ao aqui e agora.
É difícil parar a mente. Conduzem-me a memórias escondidas entre notas que teimam em apertar-me o peito. É mesmo difícil não ser absorvida pela magnitude do violoncelo do Ricardo Jacinto.

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Tento manter-me na escrita do que vejo e sinto, mas surgem-me histórias, ideias e a caneta começa a deslizar incontrolavelmente pelo papel. Aqui vamos nós até ao conto.

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Quando me recordo de olhar para o vazio de uma possível nota de suícidio, tenho a certeza que a decisão que tomei foi a correta. O vazio de uma caneta sem tinta. Talvez porque repetida e compassadamente fiz o mesmo movimento.

Baixar a cabeça. Rodá-la ligeiramente para o lado esquerdo.
Baixar a cabeça. Rodá-la ligeiramente para o lado esquerdo.

Até à exaustão do arco, à desobediência da baqueta, ao cansaço de quem dedilha cordas de aço.
O vazio de uma nota de suícidio.

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Mantenho-me focada no Nuno Morão. Talvez porque me trouxe de volta ao térreo.

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Afinal talvez goste de cá andar. Entre notas quentes, apesar da sofreguidão de outros tempos. Gosto de me atormentar com memórias robustas de mãos perdidas em coxas roliças.

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O crescendo de intensidade dos The Selva é sempre delicioso.

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Lábios molhados num copo de rum. Hoje, na verdade, é tequila.
O vazio de uma nota de suícidio por escrever. Alguma vez leste a tua nota de suícidio? Ris de quê? Ris porque não o concretizaste. Triste o que vive no silêncio de letras por escrever, frases que ficam em suspenso.
Suspendo-me. Olho-me de fora. Que triste figura.

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Agora estou com o Gonçalo Almeida. Um lado mais pesado, mas cheio de subtileza.

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Correr sobre gravilha antes de entrar num túnel longo e inesperado. A nota de suícidio continua no vazio. Grito sem grande sucesso. O vizinho martela incessantemente na parede contígua à parede do meu quarto.
Cabrão. Adia-me a nota de suícidio. Que puta de perseguição.
Ideias num corropio. E a nota que não sai. Dizias-me que seria fácil, que bastava querer. Mas e a nota que não sai.

Resta-me continuar com os pés cravados na gravilha, dentro do túnel, no vazio de uma possível nota de suícidio. Voltei a ter tinta na caneta. Fiquei sem papel.
O vazio de querer escrever uma nota de suícidio.

Esse vazio não vai ter fim. Voltei a ter papel. Fiquei sem tinta na caneta.

  • Foto de Nuno Martins | The Selva | Festival Causa Efeito
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Fixation Trio (André Hencleeday, Hernâni Faustino e Felice Furioso)

Fixation Trio (André Hencleeday, Hernâni Faustino e Felice Furioso)

SMUP, 11 de maio de 2023, 21h30

Há saudades que se matam entre ruídos e intensidades. Podia contar-te aqui a eloquência dos meus dias. Não há absolutamente nada de diferente. Na verdade tudo se transformou naturalmente.

A tempestade sobre as laranjeiras frondosas. Mudam-se os tempos, mudam-se as carpetes. Agitam-se brisas revoltas em memórias. Doem-me os músculos da cara, em redor dos lábios, outrora suculentos. Podia contar-te que no passar do tempo não dei por nada. 

Sentei-me sossegada a observar as gaivotas agitadas à beira mar. A tempestade deixou as laranjeiras e apoderou-se da duna onde me deixei ficar.

Espinhos nos pés, mente afiada.

Expurgar. Parece-me a palavra acertada.

Expurgar secreções antigas, acumuladas, enraivecidas. Podia contar-te que a agitação das tuas mãos em mim me faz correr ao fundo do poço das memórias.

Aquele sabor a gengibre e lima, o cheiro que tenho de ti. Notas de sândalo que me sufocam como um saco preto metido na cabeça.

Ora quando te calas, ora quando teimas em manter cerrada a tua mão na minha boca. Temos algo em comum. 

O túnel vazio que se enche de drama. Uma ou duas chapadas depois isso passa. Chapadas dadas com as costas da mão. Entre 2 troncos de pinheiro bravo. Cravada nas silvas que se enterram na minha pele branca.

Tingem-me de vermelho. Pequenos rios que escorrem quentes pelo meu corpo. Gosto desta sensação. Peitos eretos ao frio, o sangue quente que escorre, os pés descalços manchados pela terra molhada. 

Sinto um arrepio que me percorre dos pés até às nádegas. Ris-te enquanto me acaricias a barriga e me lambes, com afinco, o pescoço.

Ouço ao longe sussurros. Continuamos cravados nas silvas. Do miradouro vejo as gaivotas enquanto continuas incontrolável. Jorras o que em ti está em demasia.

Expurgas memórias. 

Eu contemplo e deixo que o quente me guie até ti. Gengibre e lima entre os meus lábios. Entre os meus seios. Entramos num ciclo vicioso. 

Eu em ti

Tu em mim

Não há melhor dança que aquela em que um pé é drasticamente pisado. A dor une-se subtilmente ao prazer. 

Acordo molhada. Grito com os dedos dentro de mim. Deitada olho para cima. A laranjeira filtra o sol que bate na minha cara.

Assim se expurga.

Assim se expurga.