Margarida Azevedo

Desconfinei as palavras. Um texto em memória de Juva Batella.

Em abril de 2022 fique sem palavras. Acho que as recuperei este ano. Só agora sei exatamente o que quero dizer e como quero dizer. Quis a vida que me cruzasse com o Juva durante a pandemia. A mão que me levou até ele foi a da Rosane Nunes, fundadora da Editora Raíz, atual Cambucá.

A Rosane convidou-me para escrever um conto para a colectânea Conto em Casa. Aceitei de imediato sem saber muito bem o que esperar de mim. Estava a viver um período complicado. A pandemia, a ansiedade, o medo, a auto-pressão de manter o Covidarte em funcionamento, o mestrado, a maternidade… Tudo isto fechada em casa, com medo de um vírus ainda muito desconhecido e com as emoções à flor da pele. 

O Juva iria ser uma lufada de boa energia que iria entrar pela minha janela. Mas isso eu ainda não sabia. A Rosane diz-me que gostava que apresentasse o conto do Juva, O espaço do meu tempo, numa emissão em direto e ele apresentaria o meu A caixa da Pandora. Mais uma vez não hesitei, mas instalou-se o peso da responsabilidade.

Comecei imediatamente a pesquisar sobre o Juva, a ler textos dele, e senti-me pequenina. Muito.

Combinámos uma sessão os dois para nos conhecermos, falarmos de nós, contarmos as nossas histórias, partilharmos o bom e o mau. Os tempos de tormenta e os dias de sol de quem escreve. A imagem romântica daquilo que fazemos. “E aí, Margarida!”. Começou assim a nossa chamada de vídeo. Estávamos em novembro de 2020, ele de t-shirt no Brasil e eu de gorro em Portugal.

“Acreditas que fiquei sem sentir cheiro algum desde que tive Covid? Nem o lixo mais fedorento”. Falar com ele era tão fácil. As futilidades e os temas mais robustos tinham a mesma intensidade na nossa conversa. “Fui ver o teu site. Li o que escreves. Tenho perguntas para te fazer.”
Fiquei com o coração acelerado. “Gosto do que escreves. Da forma crua como escreves”. Leu-me textos meus. Apanhou-me de surpresa. “A tua escrita lembra-me os contos da Lydia Davis. Conheces?”. Respondi-lhe que não. “Tens de ler. Vais identificar-te.” 

Tempos mais tarde encomendei, li, e ele tinha razão.

No dia 16 de novembro de 2020 riamos juntos em direto. “Queria iniciar com uma narrativa breve/um mini conto/um texto poético (…) da Margarida que me incomodou muito. No sentido mais potente da palavra”.

“Desconfinei-me.
Desconfinei-me de quem era. De quem fui.
Isolada, desconfinei-me.
Desconfinei-me da rotina que conhecia até então.
Confinei-me a levar um dia de cada vez. Sem planos, sem ambições.
Desconfinei-me de quem era.
E assim irá ser até poder voltar a confinar-me a uma vida que conheça de trás para a frente e de frente para trás”.

O Juva não sabe o que este momento representou para mim. Talvez porque nunca lho disse. Em novembro de 2020 o Juva trouxe-me confiança, boa energia, sorrisos e amizade. Mais tarde, em fevereiro de 2021, encontrámo-nos pessoalmente em Portugal. Disse-lhe que gostava de escrever algo com ele. Nunca aconteceu. Em 2022 fui surpreendida pela mensagem da sua morte. Fiquei sem saber o que dizer. Talvez por achar sempre que teremos mais tempo uns com os outros. Talvez porque deixo sempre tantas mensagens por enviar e tanta coisa por dizer a quem gosto, a quem se cruza comigo e acrescenta sempre algo mais.

O Juva tinha uma energia muito própria. Uma forma de me encorajar que ainda não tinha sentido. 
A ti, Rosane não quero deixar nada por dizer. Em vida! Obrigada por teres cruzado o meu caminho com o do Juva. Obrigada por me confiares a entrevista a este homem que eu desconhecia. Obrigada por teres estado em Portugal, rirmos juntas e acreditares no meu trabalho.

A ti, Juva. Mais de um ano após a tua morte, voltaram-me as palavras. Posso agradecer-te o teu olhar sobre os meus textos. A tua entrada no meu Mundo. As palavras têm o seu tempo. O tempo que demorei a digerir as emoções. Demorei, mas está cá fora. Desconfinei as palavras e sei que gostarias de as ler.