Margarida Azevedo

Entrevista a Rafael Toral

É um desafio entrevistar Rafael Toral. Conhecer o seu percurso aprofundadamente envolve muitas horas de escuta atenta, procurar conhecer os seus instrumentos e os músicos com que partilhou e partilha discos e palcos.

Toral é sinónimo de meticulosidade, investigação e criação. Esta entrevista é uma visão dos seus 35 anos de criação e investigação sobre o som e falaremos do seu novo disco Spectral Evolution que é um reflexo claro de todo o percurso de Toral.

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Obrigada, Rafael, por teres aceitado esta entrevista.

Obrigado, eu, pelo teu trabalho e interesse.

Parabéns pelo novo disco! Fala-me um pouco do disco e de como reflete o teu percurso.

O disco surgiu-me primeiro com a imagem de um jardim como metáfora musical. Tal como a harmonia acolhe as notas “certas” na melodia, também num jardim só estão as plantas certas no sítio certo. Então, o que eu quis fazer foi uma música equivalente às ervas que crescem selvagens no solo, abundantes e desordenadas, usando os instrumentos electrónicos como fonte de melodias “caóticas” que nascem dum solo harmónico. Essa primeira ideia foi a mais difícil. Demorei muito tempo a fazer com que a electrónica deixasse de “pairar” sobre a harmonia separadamente, mas acabei por conseguir “ensinar” harmonia àqueles bichos para que as duas camadas se unissem. Outra das raízes do disco é o fascínio pela harmonia do jazz dos anos 1930, quase todas as partes são formas-padrão do jazz antigo, logo a começar com Changes, cujos acordes Gershwin escreveu em 1930. Outras partes são elementos tornados abstractos, como a cadência “ii-V-I”, e outras.
Como já me tinha observado a gravitar em direcção a uma música mais estática, “lembrei-me” que tenho todo um passado com essa abordagem e imaginei que podia orquestrar os acordes com o som de guitarra que descobri no Sound Mind Sound Body em 1987. Muito do meu trabalho com guitarra até 2003 está evocado no disco, e naturalmente que os “solistas” electrónicos vieram directamente do Space Program (tudo o que fiz entre 2004 e 2017). Lá está – o Space Program foi lançado em ruptura com a fase anterior, até tive de mudar a maneira de pensar a música, logo este disco trata de reconciliar mundos opostos.

Como te sentes com este regresso à guitarra e com a sua utilização conjunta com os instrumentos feitos por ti? Podes elaborar um pouco mais sobre a forma como pensaste na composição de Spectral Evolution?

Antes, sempre entendi a guitarra como um objecto que emite som, harmónicos, ressonâncias e feedback. Tinha aptidões básicas como guitarrista, suficientes para tocar rock, mas nunca tive o menor interesse em técnica de guitarra nem em mecanismos harmónicos. Na verdade, aborrecia-me o discurso solístico na guitarra porque era necessário interromper um som para dar outro, e tocando depressa não dava para apreciar nenhum. Este “regresso” à guitarra é muito mais que isso, na verdade estou a começar de novo. Interiorizei, a partir das músicas que amo, que os acordes também são um som em si mesmos. Especialmente no jazz, que usa acordes complexos, com “cores” particulares e que acabam por fazer sentido inseridos numa sequência própria, não existem em separado. Então rendi-me, porque quero usar essa matéria. Como dizia Miles a Bill Evans ouvindo-o tocar, “there – i want that sound”. Isso implica interessar-me por coisas que toda a vida detestei: escalas, modos, regras. Estou a adquirir o que passei toda a vida a rejeitar. Estou ainda a começar, a observar o espaço. Sei que se fecha facilmente e só se abre com muito esforço.

A composição do álbum tomou forma quando comecei a observar certas simetrias nas peças. Decidi ter peças mais estáticas a que chamei “espaços”, dois curtos e dois longos. Uma peça descendente e outra ascendente, etc. Assim acabei por tornar a composição simétrica, que progride pela ordem inversa a partir do centro e acaba com uma “reprise”, de volta ao tema de abertura.

Consideras que a tua experiência com o rock alternativo é audível neste disco?

Acho que sim, essas experiências formativas de juventude acabam por ficar sempre no sangue, no ADN.

Como? 

Revela-se em pormenores, ou na postura perante certas coisas, ou por vezes em referência directa, por exemplo como no som de Ascending, em que uso uma quinta, intervalo típico do rock com um som distorcido também de rock clássico. Mais subtil é o uso de alguns voicings na orquestração. No jazz é habitual omitir-se a quinta de um acorde, por ser um som que só dá mais corpo e não acrescenta nada de característico ao acorde. Mas no rock a quinta é essencial, é com ela que se faz um “power chord”. Por isso muitas vezes escolhi maneiras de orquestrar os acordes com a quinta por cima do baixo, que dá uma vibração deliciosa, sensorial e mais próxima do rock. Não é uma escolha deliberada, soa-me melhor assim, está no sangue…

É um disco muito forte emocionalmente. Como pensaste e criaste as paisagens sonoras?

Bem, na verdade pensei em relações, equilíbrios e contrastes. Na maior parte dos casos procurei responder às exigências da própria matéria, às direcções que a música ia ditando. Tenho pouco jeito para criar coisas já projectadas de raiz. Sempre que realmente tento desenhar uma paisagem, a matéria mostra desconforto e vai fazendo exigências. Resistir é inútil, a música tem sempre razão. É preciso ouvi-la, ela fala comigo, sempre a queixar-se…, mas quando por fim diz “Ah, isto sim!”, isso vale tudo.

Ainda era adolescente quando li Ponto, Linha, Plano, de Kandinsky, e nele havia uma observação que ficou sempre comigo: Que uma linha recta é um ponto em movimento, impelido por uma só força, e que uma linha curva também, mas impelido por duas forças em conflito, e por isso é intrinsecamente dramática. Reparei cedo que isso também é verdade no som. Nota-se muito, por exemplo, nos bendings do Blues. Um instrumento como o mini-amplificador “MS-2” em feedback (com o qual é difícil desenhar uma linha recta) não parece soar muito dramático no seu elemento natural (free-form, como o Space Quartet), mas colocado em relação assumida com acordes e estruturas harmónicas, fácilmente ganha uma expressividade emocional muito forte, tanto parecendo um lamento como um grito. Depois tens todo o ambiente da harmonia clássica, alguns acordes têm uma expressividade pungente. Para começar, basta olhar para uma cadência basilar no jazz e muito usada no disco, a “ii-V-I”. Os números romanos referem-se aos graus de uma escala maior, em que o “ii” é um acorde menor, normalmente associado a um sentimento de melancolia ou tristeza, o “V” é um acorde dominante, cheio de tensão, e inclinado para chegar ao “I” que é um acorde maior, de plenitude e repouso. A história da música está cheia destes movimentos, e no disco as emoções nos acordes sentem-se mais intensamente porque o ritmo é muuuito lento.

A tua saída da cidade para uma vida no campo está refletida nestas paisagens? Como?

Faz-me pensar… a música toda que fiz sempre foi muito pouco permeável a informação exterior ao universo da música. Sempre foi, e quis que fosse, sobre coisa nenhuma, sem descrever nem imitar nada e sem outro assunto que não ela própria. Curiosamente isso é uma constante desde o início. Tudo o que o disco contém já existia antes de eu ter saído de Lisboa, e as “paisagens” pouco têm de paisagístico no pensamento, para mim está tudo saturado de preocupações formais. É aquele efeito de que falava James Turrell, que lhe interessava o movimento do cisne que desliza sobre a água , mas sem se ver as patas a pedalar por baixo… É verdade que algumas partes mais densas são inspiradas na ideia de floresta tropical, nessa massa sonora que não se rege por uma lógica orquestral, antes por uma lógica intrínseca à Natureza, mas isso não tem nada a ver com o local onde vivo, aliás, essa ideia ocorreu-me pela primeira vez ainda em Lisboa… Ainda assim, é um bom momento para nos lembrarmos que somos todos Natureza, não somos separados dela nem uma coisa diferente. Acho que estar interessado nisso é, no mínimo, saudável e, no máximo, necessário. É verdade que viver na cidade não facilita isso.

O silêncio – e a investigação sobre esse espaço – é claro na tua discografia na fase que designas como Space Program. Como vês esse silêncio e esse espaço no novo disco?

O Spectral Evolution já pertence a outro paradigma de pensamento. O silêncio e o espaço equivalem-se no Space Program e são o chão da grelha do tempo em que se tomam decisões – especialmente rítmicas, sobre quando fazer som. Neste disco há segmentos de fraseado em que esses princípios são seguidos (por exemplo, logo na Intro), mas na maioria dos casos a lógica discursiva na electrónica tornou-se mais da Natureza, e por via da multiplicidade, muitas vozes em simultâneo (isso tende para paisagem, logo para repouso, logo para silêncio, mas duma maneira e com um ponto de chegada radicalmente diferentes). O Space Program focou-se no discurso humano e no silêncio como o branco do papel que permite ler o que nele for escrito. É outro tipo de espaço. O Spectral Evolution não concebe o vazio, é cheio de terra e matéria viva.

Em 35 anos de carreira cruzaste-te e desenvolveste trabalho com vários músicos. A Moikai, de Jim O’Rourke, esteve sem editar durante aproximadamente 20 anos. Fala-nos um pouco do teu trabalho com Jim O’Rourke.

O Jim é um amigo querido de há muitos anos. Tocámos juntos poucas vezes. Tem um sentido crítico apuradíssimo e uma intuição certeira, além de um grau de conhecimento e mestria em quase tudo o que tem a ver com música. Estava eu em sérias dificuldades com o processo de fazer o disco “acender”, de o fazer ganhar identidade e vida própria, quando decidi enviar a versão que tinha na altura ao Jim, pedi-lhe para o ouvir e me apontar críticas, na esperança que me ajudasse a desbloquear e a perceber coisas que não funcionavam. Respondeu a dizer que gostava mesmo muito, e que pensava relançar a sua editora para o publicar. Que ele tivesse gostado eu percebi, afinal eu estava a tentar fazer uma obra-prima, mas quanto à editora, não consegui levá-lo a sério, achei demasiado inverosímil, pensei que havia um lado nele que eu não ia perceber. Mas como se vê, ele estava mesmo a falar a sério.

Gosto muito da Noise Precision Library. Podes aprofundar um pouco mais sobre estas edições digitais?

Obrigado. Comecei a publicar gravações que achava interessantes, que podia partilhar com quem me acompanhasse, mas que não me pareciam justificar o investimento num suporte físico ou em cobertura jornalística. Algumas coisas antigas das cassetes de 4 pistas, etc. E também tinha gravações de colaborações, na maioria ao vivo e algumas notáveis, que não queria que ficassem na gaveta. Acabou por funcionar como um registo público de muita coisa que fiz e nunca chegou a ser disco. Algumas edições acabei mesmo por fazer em CD também, mas muito poucas, como o Harmonic Series 3 ou o Under the Sun. Nesta fase tenho publicado pouca coisa porque ainda estou em transição…

Obrigada, Rafael.

Pode ler a resenha que fiz sobre o disco neste link.