João Concha | Exposição “Que casa sou?”
Cruzei-me com o João numa aula do Mestrado em Edição de Texto. O que é que isso interessa? Tudo e muito!
Foi convidado pelo Professor Rui Zink para nos apresentar a Não Edições, que sempre considerei uma editora incrível: a estética, a linha editorial, a visão, a aparente simplicidade de todo o trabalho. Quanto mais simples nos parece, mais complexo costuma ser. O João é uma pessoa com uma sensibilidade acima da média, um sentido estético refinado e uma simpatia cativante. É fácil criar-se uma ligação empática com ele (digo eu).
Aquela aula em que o João foi convidado para falar do seu trabalho enquanto editor aguçou-me a curiosidade.
Algum tempo mais tarde, já durante a pandemia, entrevistei-o para o Covidarte e ficaria a conhecer mais um pouco do seu trabalho.
Agora, em julho de 2023, inaugura a exposição “Que casa sou?” onde reúne uma série de pinturas resultantes de uma residência de 3 meses. Foco, determinação e visão são algumas das características que atribuo ao João.
A exposição estará na Casa da Cultura de Setúbal, até setembro de 2023, e acreditem que não a querem perder. Alimenta a reflexão sobre o espaço que ocupamos, a forma como o ocupamos, o lugar das ideias, do estar, do tempo e do ser.
Obrigada, João por aceitares esta entrevista e parabéns pela excelente exposição!
Margarida Azevedo (MA): Fala-nos um pouco de como nasceram estas tuas casas (da ideia à conceção).
João Concha (JC): É difícil perceber de onde vêm certas coisas, motivos ou obsessões.
Parece-me que é isso que sucede com estas casas (ou não-casas) e talvez com grande parte do meu trabalho plástico. Aliás, é uma tarefa ingrata para quem cria, a de analisar ou desmontar uma dada pesquisa (sua), quando também é feita de erros, desvios, acidentes…
Este arquétipo da ‘casa’ acompanha-me há anos, mas foi em 2013/2014 que fiz os primeiros trabalhos em série, partindo de desenhos em projecção ortogonal para desconstruir a forma ‘casa’, como se fosse uma caixa aberta ou planificada. Depois desta abordagem mais racionalizada e de controlo das formas recortadas em papel passei a pinturas de maior dimensão, em que já andava à procura de outra coisa. Esses trabalhos deram origem à exposição “abre para dentro”, em 2018, na Galeria Monumental.
A partir de 2019, uma tese de doutoramento e, mais tarde, os confinamentos pandémicos fizeram-me estar em casa mais tempo do que supunha. Uma mudança de casa precipitou outras mudanças e este tema da ‘casa’, ou melhor, do ‘lar’ (‘home‘, difícil encontrar palavra em português para isso, sem a conotação que ‘lar’ adquiriu) voltou a ser importante.
Em 2021 tornei a desenhar e retomei a prática de um diário gráfico. Acho que tentava fugir ao domínio do ‘verbal’, numa espécie de compensação face aos anos que passei com a tese… que é sempre algo avassalador. Foi o regresso a um exercício visual assente no gesto: multiplicaram-se os esboços rápidos, mais repetitivos ou mais exploratórios. E ainda que os visse inicialmente como um meio (eventuais estudos para pinturas, que não podia fazer por ter ficado sem atelier), fui percebendo que não me fazia sentido hierarquizar ‘processo’ e ‘resultado’, ‘desenho’ e ‘pintura’, quase indestrinçáveis. O ‘meio’ e o ‘fim’ esbatiam-se, por isso aceitei expor esses diários e mostrar desenhos originais e reproduções na Fabrica Features Lisboa, em 2022. Afinal de contas, numa exposição partilho sempre um processo, uma fase concreta do caminho em que me encontro. E essa mostra foi vista pelo José Teófilo Duarte, que me convidou a apresentar trabalho na Casa da Cultura, na altura sem uma data definida.
Já em 2023, desde Abril, tive a oportunidade de fazer uma residência artística na Duplex | air e ter tempo/espaço, entre outras condições práticas, para pensar e trabalhar o tema. Na Duplex vim a encontrar também uma ‘casa’, já habitada por artistas permanentes ou de passagem. É desse período muito intenso que vêm os trabalhos agora mostrados em “Que casa sou?” e nos quais me interessa radicalizar o valor do gesto e da cor, para tocar uma noção mais subjectivada da ‘casa’ enquanto espaço ou lugar emocional.
MA: Enquanto falávamos na inauguração referiste-te às casas e à sua importância na segunda infância. Podes dar-nos a tua visão sobre a importância do desenho e da pintura na infância?
JC: Na verdade, acho que conversávamos (também com a Ana Nogueira) sobre como a figura da ‘casa’ é a segunda representação visual que muitas crianças fazem. Há a primeira, o rosto, que é um círculo com elementos figurativos, e depois a casa, um quadrado ou retângulo a que se soma um triângulo. Os detalhes variam, mas esse arquétipo é expresso desde a infância: um lugar reconhecível e, em princípio, seguro. Embora as sombras e as contradições também o habitem, e isso passa pelos trabalhos que viste, creio eu. E a memória espacial das casas em que vivi, na infância e ao longo da vida, está na base destes desenhos ou pinturas (já não os distingo, neste caso).
O desenho é uma forma de expressão de que me lembro desde sempre. Mesmo para fases das quais não tenho grande memória, existem desenhos que os meus pais guardaram e que hoje olho com surpresa (como se não fossem meus). São muito anteriores a ter aprendido a escrever. Não quero entrar pela questão da importância do desenho na infância, até porque não sou especialista no assunto, mas posso dizer que para mim desenhar era tão ou mais natural do que falar, brincar… era também, ou acima de tudo, uma forma de brincar. Para um filho único, tímido mas curioso, as fronteiras entre o real e o imaginário eram pouco evidentes [risos]. E o desenho estava e está, para mim, ligado ao prazer. Materialização e exteriorização lúdicas, do corpo e a partir dele, um “pensamento da mão”.
Agora, invertendo a relação de importância que sugeriste entre desenho e infância, eu diria que um certo olhar ou experiência do mundo e do próprio corpo enquanto ‘criança’ (estou a pensar no espanto, na curiosidade) é essencial para o desenho ou mesmo para a pintura, tal como os vejo e pratico. E aí lembro-me de vários artistas que falaram, de alguma forma, sobre isso, de Klee a Picasso, e que o trabalharam, mas também poetas, como Manoel de Barros…
MA: Os teus trabalhos são muito expressivos plasticamente. Como utilizas o gesto como forma de expressão?
JC: Falava há pouco no gesto, sim, e no desenho é ele que, por vezes, decide e define. Não sei se consigo responder à tua pergunta, pois depende muito de cada trabalho. Há talvez um lado experimental e nem sempre controlado, em que lido com a imperfeição (o erro, o inacabado, a sobreposição de vários gestos), pelo menos em algumas das coisas que expus. Implica estar aberto ao que acontece com a própria matéria, quer com o suporte, quer com as tintas e outros materiais que uso para riscar: lápis de cera, pastel de óleo. Uso bastante a linha, inclusive nas pinturas, mas cada trabalho é um trabalho e espero que dê a ver algo do próprio processo… não me interessa especialmente ocultá-lo… ou deixar limpo o resultado.
MA: Tens uma casa de pernas para o ar. Que mensagem pretendes passar com essa “caixa” ao contrário?
JC: Tenho dúvidas quanto a “passar mensagens”, isto é, quanto à necessidade de ‘comunicar’ no trabalho artístico. Não procuro usar uma linguagem que torne inequívoca uma suposta troca entre quem produziu e quem vê, ao género emissor-receptor.
Há imagens que não sei bem de onde surgem, ainda que possa desconfiar ou reflectir sobre isso, claro. Mas o mistério tem o seu lugar. E prefiro deixar espaço em branco para quem vê; interessam-me muito essas outras possibilidades de leitura…
É preciso acreditar nos “poderes da pintura” (penso em José Gil), sendo que, enquanto artista ou fruidor, interessam-me mais esses ‘poderes’ sinéstesicos (que advêm de uma experiência física, presencial e ’em aberto’ da obra) do que as eventuais qualidades informativas da arte. A reflexão pode ser suscitada sem mensagem clara ou verbalizável, a partir da fruição: do visual e do pictórico, do simbólico e não só, mas sem uma agenda prévia.
Mesmo quando se dá título a um trabalho ou a uma exposição, como esta, prefiro o campo aberto e a pergunta (um ponto de interrogação) do que o registo declarativo. Há demasiadas legendas no mundo.
MA: Além das pinturas tens algumas maquetes de casas. Casas que abrem em diferentes sentidos e que abrigam diferentes ideias. Porquê essas maquetes?
JC: Sempre tive alguma dificuldade com a tridimensionalidade, com a modelação de formas, mas fui encorajado por uma amiga artista [Maria João Lopes Fernandes] a arriscar esse exercício, e depois também durante a própria residência [Susana Rocha, directora artística da Duplex | air].
Encarei as maquetes em papel como estudos para os desenhos/pinturas, acreditas? Como forma de explorar a simplicidade espacial destas ‘não-casas’ e suas variações, mais acessíveis ou mais inacessíveis, mais abertas ou mais fechadas, à procura de sinais contraditórios… o visível e o invisível, por exemplo.
De início, não pensei expor essas construções muito precárias, em papel pintado, mas durante a montagem achei que faria sentido no contexto específico onde estão, junto àquela tela de maior dimensão, numa sala mais escura, etc.
Enquanto pintava, ainda na Duplex, fiz uma série de fotografias com o telemóvel, para registo meu. Curiosamente, ao descarregar as imagens achei que havia ali outra coisa… algo de fantasmagórico… as imagens e o digital transformaram por completo o ambiente interior daquelas maquetes. Acabaram por dar origem a uma breve série com a qual colaborei na rubrica “Espectrografias” do projecto GHOST — Espectralidade: Literatura e Artes (Portugal e Brasil) [IELT — FCSH-UNL].
MA: Tens sempre uma linha estética muito bem definida no teu trabalho. Como interligas esta tua exposição com o teu trabalho em design, edição, etc?
JC: Para ser honesto, acho que há pouca relação entre o trabalho apresentado na exposição e outros ofícios em que também me envolvo, como o da edição. Acho até que com este conjunto de desenhos/pinturas tento escapar ao ‘projectual’, em favor de uma experimentação mais descomprometida…
A coerência entre diferentes modos de expressão, por vezes, é excessivamente valorizada. Para mim, pelo menos, ela não é um objectivo ou algo que me preocupe.
MA: Não assinas as tuas peças (pelo menos à frente). Tens algum motivo específico para não o fazeres?
JC: Visualmente perturba-me a assinatura, mais um signo ali…
MA: Tens mais exposições em vista? Quais as novidades para breve?
JC: Para já, e nos próximos tempos, espero poder continuar neste diálogo interior/exterior, em pinturas como as maiores que estão na exposição. É como que entrar naqueles espaços e pintar o seu interior, desta vez. Estou a trabalhar nisso, mas ainda lentamente e sem qualquer exposição prevista. Quando exponho, mais do que fechar uma fase ou uma série, reflicto sobre o momento em que me encontro; é mais um modo de poder continuar, isto é, colocar novas perguntas.
Obrigada, João e muito sucesso!
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