Margarida Azevedo

Spectral Evolution | Rafael Toral

Conhecer o percurso de Rafael Toral é mergulhar em 35 anos de música, composição e interpretação no rock, free jazz, eletrónica e ambiente. É silêncio e contemplação, ruído e desconforto. É conhecer em profundidade os caminhos e percursos a que o som nos pode conduzir.

Cruzei-me com o trabalho de Rafael na fase que o mesmo intitula como Terceira fase (a partir de 2017). O disco Jupiter and Beyond (com João Pais Filipe) é um dos discos que mais gosto desta fase de Toral. Como diz no seu site, nesta fase do seu percurso, este disco é mais cru e emocional. E para mim tornou-se percetível que são estes discos mais emocionais que me levam a explorar a carreira de Rafael. Mais tarde escrevi sobre dois lançamentos digitais da Noise Precision Library: Live in Lisbon (with Hilmar Jensson) e Live in Lisbon (with Tatsuya Nakatani and John Edwards). E, em 2023, escrevi sobre o seu Space Quartet e o disco Last Set.

Chegados a 2024, encontramos em Spectral Evolution o destino desta viagem de 35 anos. Um regresso à guitarra elétrica, um disco que deixa em aberto caminhos para diversas viagens. Rafael apresenta-nos a discografia, que nos permite ouvir o seu trabalho e compreender o seu caminho, o seu racional de criação, a forma como Spectral Evolution sintetiza o seu percurso. Este último disco é avassalador.

É profundo, cruza o térreo com o espiritual e pela primeira vez não me levou para outros mundos (atenção que gosto muito de viajar nos outros mundos de Toral). Levou-me numa viagem interior, uma viagem minha (e na verdade dele). Deve existir uma explicação racional para a apurada sensibilidade de Rafael Toral.  De sentidos aguçados ouvimos o nosso eu interior. Revivemos tristezas, refletimos sobre escolhas, ações e decisões. Ouvimos ao longe – fruto da nossa mente – canções que nos embalaram na infância e medos de quem escondido esperava pela noite debaixo da cama. Entramos na igreja pela mão da nossa avó e viramos as costas ao altar num ato ponderado de negação. Este disco é uma lição de psicanálise, de profunda comunhão com o nosso lugar no mundo – pelo menos, foi assim para mim.

É um disco belo e puro. Entrei no comboio sem saber que a viagem, de quarenta e sete minutos, seria tão intensa, com paisagens tão verdejantes, mas também tão negras. É uma viagem sem retorno. Depois de entrarmos tão profundamente no trabalho de Rafael, não mais voltaremos ao ponto inicial. Reconhecemos neste disco o seu percurso de 35 anos. A interligação entre a guitarra e as eletrónicas de sons espaciais, levam-me ao momento em que, há uns anos, procurei conhecer mais aprofundadamente o seu trabalho. Na verdade, aquilo que poderia ser considerado improvável, torna-se harmoniosamente perfeito neste disco. A viagem pelo seu lado mais espacial, composto pelos instrumentos eletrónicos que foi construindo, e os instrumentos clássicos que fazem parte do nosso conhecimento geral.

O que Toral nos propõe – ou o que eu entendo que nos propõe – é que, num momento em que o mundo está tão caótico e perdido, encontremos o nosso lugar. A energia canalizada em sons que o próprio foi descobrindo e trabalhando ao longo de décadas. Mais que um músico, compositor ou produtor, Rafael é um investigador do silêncio, do som e das suas potencialidades.

Já disse que este disco é belo. Acho que ainda não disse que é duro.

A morte faz parte da viagem. A morte de uma parte de nós também acontece nesta obra para depois ascendermos até outra dimensão.

Demorei muito tempo a escrever sobre este disco porque o que me trouxe mexeu profundamente comigo. Inicialmente, mais que uma resenha sobre o disco, nasceu uma introspeção sobre a minha viagem com este disco. Foi preciso voltar a sentar-me, encontrar o caminho certo e reescrever. Nunca tinha escrito algo tão pessoal que se perdesse por completo o foco no que era pretendido: o disco. E até nisso a experiência foi nova e enriquecedora. Nova escuta, nova viagem, reescrever sem perder nadinha da experiência que são estes quarenta e sete minutos.

O percurso musical de Rafael Toral é vasto, rico e consistente. Sinto-me sempre pequenina quando escrevo sobre ele.

Entrei em partes de mim que desconhecia, desci até ao mais profundo, voltando a elevar-me entre a sua guitarra e os seus sons etéreos. Esta viagem é irrepetível e, sem dúvida, que é um disco que percorre de forma exímia os 35 anos de criação de Toral.

Pode ler a entrevista a Rafael Toral neste link.