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Entrevista a Ana Bárbara Pedrosa

Entrevista a Ana Bárbara Pedrosa

Cruzei-me com a Ana Bárbara Pedrosa durante a pandemia. Em julho de 2021, entrevistei-a para o Covidarte e ficaria a conhecer melhor o seu trabalho enquanto escritora. É uma caixinha de surpresas!

Proprietária de:

  • um humor incrível
  • uma escrita limpa de preciosismos
  • um forma muito direta de comunicar 

Os três pontos acima são meramente indicativos do que podem esperar se um dia se cruzarem com a Ana Bárbara Pedrosa e a sua escrita. 

Nota: se passarem por ela livrem-se de a tratar apenas por Ana.

No fim desta entrevista encontram a review dos livros Palavra do Senhor e Amor Estragado (ambos da Bertrand Editora). A Ana Bárbara Pedrosa levou-me numa viagem entre Deus no divã de um psicanalista, em 2021, e um Manel cheio de testosterona e problemas de autoconfiança, em 2023. 

Obrigada, Ana Bárbara por aceitares esta entrevista e parabéns pelo novo livro Amor Estragado.

No lançamento do Amor Estragado, na Ler Devagar, contaste que este livro esteve 10 anos a ser pensado, escrito e reescrito. Fala-nos um pouco sobre esse processo.

Não foram dez anos de forma linear, mas foi mais ou menos isso desde o momento em que comecei a escrever a história até atingir esta forma final. Claro que pelo meio houve vários interregnos: umas vezes, de uns meses; outras, de anos. Escrevi a primeira versão algures em 2013, antes de me mudar para o Brasil. Daí, já havia o esqueleto da família, que viria a sobreviver até à forma final, mas pouco mais sobreviveu. A prosa mudou completamente, acho que não sobrou uma única frase da primeira tentativa de romance. Ao longo destes anos, fui aprendendo muito sobre escrita, publiquei dois romances, escrevi outro que entretanto está na gaveta. As tentativas anteriores incluíram experiências muito diferentes até eu ter conseguido uma versão que me satisfizesse. A primeira versão estava na terceira pessoa, por exemplo. Uma posterior estava escrita apenas pela voz do Zé. Só nesta última é que pensei em escrever sob o ponto de vista do Manel. Com ele, podia trazer uma primeira voz mais violenta, uma cabeça mais estropiada. Isso, para um ficcionista, tem sabor de voo. Mas também me interessava o contraponto que o Zé podia fazer e, em termos de estrutura da narrativa, os capítulos dele também servem para que o leitor possa respirar, e por isso não abdiquei dele.

A tua escrita neste livro é mais dura e, muitas vezes, muito característica de um estrato social. Senti que o Manel vai ao encontro do estereótipo que a sociedade tem do abusador/agressor. Porque não fugiste desse tipo de agressor? Consideras que a sociedade tem uma imagem preconcebida de quem agride?

Não fugi nem fui ao encontro. Simplesmente, quis contar a vida daquela família, daquelas personagens. A questão da agressão, no exercício literário, nem me interessa por aí além. A violência doméstica no livro é um eixo que ajuda a constituir a narrativa, mas que não é o eixo principal. O que me interessava ali era a dissolução da família. A violência em si, para mais conjugal, é uma coisa muito a preto e branco. Quem a pratica é um crápula, não há muito mais a dizer, e não importa muito se falamos de alguém como o Manel ou como o Manuel Maria Carrilho. Dá no mesmo e, enquanto matéria literária, acaba por valer pouco. O desafio era o resto: o fim do amor intemporal, incondicional, e esse é o amor da família de origem. É inconcebível uma mãe deixar de amar um filho, dois irmãos deixarem de se dar. Foi essa dissolução que me interessou e foi esse o amor que se estragou.

Entre Palavra do Senhor e Amor Estragado algo se repete: a forma como evidencias a violência e o lado mais sádico e cru do ser humano. Consideras que há um Manel escondido em cada um de nós? Que a violência que retratas nos teus livros está intrinsecamente ligada a nós? 

Não.

O Zé. Na leitura do teu livro é a visão que o Zé tem dos factos que mais mexeu comigo. Trazes para este livro o conceito de família (seja ela disfuncional ou não), de traições e laços que se quebram, de formas diferentes de ver o certo e o errado. Como pensaste o lugar da voz do Zé neste enredo?

A voz do Zé, ao longo do processo, até surgiu antes da voz do Manel, precisamente porque o que me interessava era a dissolução desse eixo. Dá muita margem de manobra pensar na degradação de alguém que se conheceu desde sempre – no caso, um irmão – e ver essa degradação como motivo de afastamento. O rapaz que era visto como o irmão mais velho, um de nós, de repente transforma-se noutra coisa. Ao meter-se no grupo dos bêbedos, outra-se e passa a ser um deles.

Deste-me vários murros no estômago durante a leitura. A morte pelas mãos da violência, o medo que se deve sentir quando percebemos que estaremos perante o momento final. Falaste com algumas vítimas de violência enquanto escrevias o livro? Qual a tua proximidade a este assunto?

Não. Para isso, mais me valeria falar com alguém que tivesse agredido alguém no âmbito de uma relação conjugal, uma vez que foi essa a personagem que tive de construir.

O livro não é sobre violência doméstica. Não tenho nenhuma proximidade relevante ao tema.

Como foi a experiência de matares a Ema, mulher do Manel? 

Foi muito boa, muito intensa. A escrita dá muita vida interior, o que não significa que essa vida em si seja agradável, ou que este “boa” tenha carácter de amabilidade. Mas foi boa por ser intensa, que é o que procuro na escrita. Ao mesmo tempo, tive de levar o teatro da ficcionalização ao máximo. Sou a antítese do Manel em muitas coisas, e uma delas é a minha incapacidade para a violência. Até nos treinos de kickboxing e jiu jitsu tenho dificuldades com a ideia de poder fazer mossa a alguém. Se calhar, é por isso que estou sempre a levar porrada. Mas a escrita permite ser outra cabeça ao mesmo tempo que se cria outra cabeça. No caso da leitura, só se pode ser, sem se criar. Isso significa que escrever também pode trazer remorsos, coisa que me aconteceu com a Ema. Na véspera de a matar, cheguei à sala quase transtornada e disse: “Agora não há nada a fazer. Vou matar a Ema amanhã.” Isto estava decidido desde a primeira frase, “Matei a minha mulher”, nunca poderia ser de outra maneira. Mas acho que me senti como o Zé quando percebeu que podia ter evitado mas não evitou.

Escrever isto na primeira pessoa também teve momentos de montanha-russa. Num momento, eu era o Manel; depois, o carteiro tocava à campainha e eu era eu de novo. Até me interrompeu a meio do assassinato. Houve assim uma espécie de aterragem em bruto, e eu ainda estive ali meio abananada a receber os livros que ele trazia com a sensação de que escondia um cadáver no escritório, que fazia uma coisa proibida.

Não sei como será com os próximos, mas, para já, Amor estragado foi o livro que mais me exauriu emocionalmente. E gostei muito de ser o Manel; inventar outros eixos de raciocínio foi uma experiência muito divertida. E, claro, ainda há a questão da voz: eu não falo assim e tive de aprender a falar e a ser capaz de dizer as mesmas coisas, veiculando os mesmos sentidos, com uma linguagem que, à partida, é mais reduzida.

Está lançado, nas mãos de muita gente, a ser lido e partilhado. Como sentes que tem sido a adesão a este novo livro?

Tenho visto alguns leitores e a recepção parece-me estar a ser muito boa. Este tipo de estética não tem sido comum na literatura portuguesa. Os leitores têm dito que o livro é cru, o que me deixa muito contente. Não há grande erudição nas duas vozes narrativas, e acho que é precisamente isso que vai atraindo os leitores: não sentem que estão a ser enganados por uma voz a armar ao literário ou ao intelectual. Também me irrita muito, quando leio, ver palavras que não fazem sentido naquela voz. Cada livro pede uma voz, cada personagem também. Foi isso que tentei fazer aqui.

Já estás a escrever o próximo? 

Tenho um romance na gaveta a descansar e estou a trabalhar noutras duas coisas, muito diferentes dos livros publicados e entre si, às pinguinhas.

Obrigada, Ana Bárbara e muito sucesso!

Review Palavra do Senhor

Esta review está para ser escrita há 2 anos. Vergonhoso da minha parte. Li o livro, adorei, entrevistei a Ana Bárbara para o Covidarte e nunca escrevi o que queria ter escrito na altura. Foi com este livro que conheci a escrita da Ana Bárbara, que me agarrou do início ao fim do livro. 

Espero aguçar-vos a curiosidade e aconselho a quem nunca leu nada da autora que comece por este.

Deus Nosso Senhor decidiu ir até ao psicanalista. Finalmente! O psicanalista somos nós 一 os leitores. Interessante como me senti parte ativa deste livro.

Deus é sádico, retira prazer do sofrimento alheio, comanda o mundo por trilhos de caos e paz. Brinca e diverte-se com as nossas vidinhas. É assim que se entretém connosco desde que criou este mundo que experienciamos 365 dias por ano (366 em anos bissextos). Eu disse “desde que criou este mundo”? É o efeito deste livro… Vivemos intensamente a história e depois escrevemos estas barbaridades.

Na verdade, segundo o próprio narrador deste livro “Levam à letra coisas de que já me arrependi, que não me dizem nada, que improvisei na altura. Também eu cresci, tornei-me num Deus melhor, como um rapaz que se faz homem. Hoje o que quero para o mundo é outra coisa. Não me interessam as trevas nem as vinganças e as guerras causam-me asco”. Estamos na página 13 e a autora já colocou Deus a mentir (é só a minha modesta opinião). 

Foi também com este livro que percebi que falho ao cuidar de mim e o grande motivo de Adão ter aterrado num jardim (percebi assim as duas coisas, duma vez):: “E já se sabe como é: para saber se sabemos cuidar de nós, primeiro cuidamos de uma planta. Por isso pus um homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”. 

Este livro ofereceu-me uma certa terapia, muitas gargalhadas e uma leitura a uma velocidade incrível. Não há palavras a mais, nem a menos. Tudo está na medida certa. 

Passagens como o Adão que já não pode ouvir a Eva ou esta sobre Caim “Talvez a culpa tenha sido minha por não lhes apontar o caminho. Afinal, fui eu quem provocou Caim e deixou que a sua espécie se reproduzisse em cima de um homicídio”, mostram que Deus precisa mesmo de acompanhamento psiquiátrico. 

Claro que o amor que nutria por Maria também é assunto. “Quanto a Maria, não foi sol de pouca dura. Quem ama odeia, e por isso odiei-a muitas vezes, durante anos e até durante séculos. Não foi fácil, mas pelo menos pus o mundo a dizer que o filho é nosso e, se ninguém a imagina na cama com José, muito menos sabem do affair com Gabriel”.

Sou fã deste Deus! Também eu nutro amor ódio por ele. A forma como conta a sua vida neste divã é incrível.  Eu enquanto o ouço falar nesta história reforço opiniões que já tinha sobre a teoria de ter sido ele a criar o Mundo.

O conhecimento que a Ana Bárbara tem da Bíblia é impressionante. Eu não o tenho, nunca a li, mas ao ler este livro assumo que quero ler a bíblia. Acho que deve ser um desafio interessante.

A Ana Bárbara Pedrosa ainda vai dar muito que falar enquanto escritora. Este é o seu segundo romance (ainda não li o primeiro, Lisboa, Chão Sagrado, que já está na minha lista para encomendar). Foi o livro certo para a conhecer enquanto escritora: tem um humor requintado, uma escrita fluida e cativante e um ritmo incrível.

Review Amor Estragado

“Matei a minha mulher. Não fiz de propósito, mas é daquelas coisas que, depois de feitas, já não deixam volta a dar.” 一 assim começa o novo livro da Ana Bárbara Pedrosa. Final anunciado e muito para ser contado. Preparem-se para coisas duras de ler, fazer uma visita à triste realidade da violência doméstica e dar um pulinho até ao mundo da estupidez humana. Tudo em 200 páginas de escrita real, sem rodeios e com a voz distinta da Ana Bárbara. 

Temas como: a deterioração das relações familiares; o desafio entre fazer o que é certo ou proteger aqueles que partilham connosco laços de sangue e a imagem estereotipada que a maioria de nós tem dos agressores.

É um livro escrito num tom bruto, com momentos muito agressivos, e que nos conquista pela crueza da escrita e dureza da mensagem que passa. 

O primeiro romance que li da autora é completamente diferente e não sinto que possa estabelecer comparações. Talvez frisar que a Ana Bárbara tem a facilidade de nos fazer mergulhar em temas distintos e navegar entre o humor e a brutalidade como peixe na água.

Entre o Manel (agressor) e o Zé (o seu irmão mais velho) vamos ouvindo perspetivas diferentes da história de vida partilhada e dos supostos motivos que levaram ao homicídio da Ema. São traçadas as personalidades e as visões que têm um dos outros.

“O Manel achou durante demasiado tempo que lhe bastava ser irmão, que não tinha de provar nada, que nem precisava de acertar. Que nós eramos a rede do trapézio para a maldade. (…) Mesmo depois de a matar, nunca lhe passou pela cabeça que nós nos pudéssemos ter perguntado o que é que ela veria nele”. É a visão do Zé que mais me agarra à leitura e é este personagem que assume, para mim, um papel fundamental na narrativa. 

Uma experiência de leitura muito diferente do seu anterior romance, que nos faz refletir sobre uma série de questões sociais, económicas e culturais. 

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João Concha | Exposição “Que casa sou?”

João Concha | Exposição “Que casa sou?”

Cruzei-me com o João numa aula do Mestrado em Edição de Texto. O que é que isso interessa? Tudo e muito!
Foi convidado pelo Professor Rui Zink para nos apresentar a Não Edições, que sempre considerei uma editora incrível: a estética, a linha editorial, a visão, a aparente simplicidade de todo o trabalho. Quanto mais simples nos parece, mais complexo costuma ser. O João é uma pessoa com uma sensibilidade acima da média, um sentido estético refinado e uma simpatia cativante. É fácil criar-se uma ligação empática com ele (digo eu).
Aquela aula em que o João foi convidado para falar do seu trabalho enquanto editor aguçou-me a curiosidade.
Algum tempo mais tarde, já durante a pandemia, entrevistei-o para o Covidarte e ficaria a conhecer mais um pouco do seu trabalho.
Agora, em julho de 2023, inaugura a exposição “Que casa sou?” onde reúne uma série de pinturas resultantes de uma residência de 3 meses. Foco, determinação e visão são algumas das características que atribuo ao João.
A exposição estará na Casa da Cultura de Setúbal, até setembro de 2023, e acreditem que não a querem perder. Alimenta a reflexão sobre o espaço que ocupamos, a forma como o ocupamos, o lugar das ideias, do estar, do tempo e do ser.

Obrigada, João por aceitares esta entrevista e parabéns pela excelente exposição!

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Margarida Azevedo (MA): Fala-nos um pouco de como nasceram estas tuas casas (da ideia à conceção).

João Concha (JC): É difícil perceber de onde vêm certas coisas, motivos ou obsessões.

Parece-me que é isso que sucede com estas casas (ou não-casas) e talvez com grande parte do meu trabalho plástico. Aliás, é uma tarefa ingrata para quem cria, a de analisar ou desmontar uma dada pesquisa (sua), quando também é feita de erros, desvios, acidentes…

Este arquétipo da ‘casa’ acompanha-me há anos, mas foi em 2013/2014 que fiz os primeiros trabalhos em série, partindo de desenhos em projecção ortogonal para desconstruir a forma ‘casa’, como se fosse uma caixa aberta ou planificada. Depois desta abordagem mais racionalizada e de controlo das formas recortadas em papel passei a pinturas de maior dimensão, em que já andava à procura de outra coisa. Esses trabalhos deram origem à exposição “abre para dentro”, em 2018, na Galeria Monumental.

A partir de 2019, uma tese de doutoramento e, mais tarde, os confinamentos pandémicos fizeram-me estar em casa mais tempo do que supunha. Uma mudança de casa precipitou outras mudanças e este tema da ‘casa’, ou melhor, do ‘lar’ (‘home‘, difícil encontrar palavra em português para isso, sem a conotação que ‘lar’ adquiriu) voltou a ser importante. 

Em 2021 tornei a desenhar e retomei a prática de um diário gráfico. Acho que tentava fugir ao domínio do ‘verbal’, numa espécie de compensação face aos anos que passei com a tese… que é sempre algo avassalador. Foi o regresso a um exercício visual assente no gesto: multiplicaram-se os esboços rápidos, mais repetitivos ou mais exploratórios. E ainda que os visse inicialmente como um meio (eventuais estudos para pinturas, que não podia fazer por ter ficado sem atelier), fui percebendo que não me fazia sentido hierarquizar ‘processo’ e ‘resultado’, ‘desenho’ e ‘pintura’, quase indestrinçáveis. O ‘meio’ e o ‘fim’ esbatiam-se, por isso aceitei expor esses diários e mostrar desenhos originais e reproduções na Fabrica Features Lisboa, em 2022. Afinal de contas, numa exposição partilho sempre um processo, uma fase concreta do caminho em que me encontro. E essa mostra foi vista pelo José Teófilo Duarte, que me convidou a apresentar trabalho na Casa da Cultura, na altura sem uma data definida.

Já em 2023, desde Abril, tive a oportunidade de fazer uma residência artística na Duplex | air e ter tempo/espaço, entre outras condições práticas, para pensar e trabalhar o tema. Na Duplex vim a encontrar também uma ‘casa’, já habitada por artistas permanentes ou de passagem. É desse período muito intenso que vêm os trabalhos agora mostrados em “Que casa sou?” e nos quais me interessa radicalizar o valor do gesto e da cor, para tocar uma noção mais subjectivada da ‘casa’ enquanto espaço ou lugar emocional.

MA: Enquanto falávamos na inauguração referiste-te às casas e à sua importância na segunda infância. Podes dar-nos a tua visão sobre a importância do desenho e da pintura na infância?

JC: Na verdade, acho que conversávamos (também com a Ana Nogueira) sobre como a figura da ‘casa’ é a segunda representação visual que muitas crianças fazem. Há a primeira, o rosto, que é um círculo com elementos figurativos, e depois a casa, um quadrado ou retângulo a que se soma um triângulo. Os detalhes variam, mas esse arquétipo é expresso desde a infância: um lugar reconhecível e, em princípio, seguro. Embora as sombras e as contradições também o habitem, e isso passa pelos trabalhos que viste, creio eu. E a memória espacial das casas em que vivi, na infância e ao longo da vida, está na base destes desenhos ou pinturas (já não os distingo, neste caso).

O desenho é uma forma de expressão de que me lembro desde sempre. Mesmo para fases das quais não tenho grande memória, existem desenhos que os meus pais guardaram e que hoje olho com surpresa (como se não fossem meus). São muito anteriores a ter aprendido a escrever. Não quero entrar pela questão da importância do desenho na infância, até porque não sou especialista no assunto, mas posso dizer que para mim desenhar era tão ou mais natural do que falar, brincar… era também, ou acima de tudo, uma forma de brincar. Para um filho único, tímido mas curioso, as fronteiras entre o real e o imaginário eram pouco evidentes [risos]. E o desenho estava e está, para mim, ligado ao prazer. Materialização e exteriorização lúdicas, do corpo e a partir dele, um “pensamento da mão”.

Agora, invertendo a relação de importância que sugeriste entre desenho e infância, eu diria que um certo olhar ou experiência do mundo e do próprio corpo enquanto ‘criança’ (estou a pensar no espanto, na curiosidade) é essencial para o desenho ou mesmo para a pintura, tal como os vejo e pratico. E aí lembro-me de vários artistas que falaram, de alguma forma, sobre isso, de Klee a Picasso, e que o trabalharam, mas também poetas, como Manoel de Barros…

MA: Os teus trabalhos são muito expressivos plasticamente. Como utilizas o gesto como forma de expressão? 

JC: Falava há pouco no gesto, sim, e no desenho é ele que, por vezes, decide e define. Não sei se consigo responder à tua pergunta, pois depende muito de cada trabalho. Há talvez um lado experimental e nem sempre controlado, em que lido com a imperfeição (o erro, o inacabado, a sobreposição de vários gestos), pelo menos em algumas das coisas que expus. Implica estar aberto ao que acontece com a própria matéria, quer com o suporte, quer com as tintas e outros materiais que uso para riscar: lápis de cera, pastel de óleo. Uso bastante a linha, inclusive nas pinturas, mas cada trabalho é um trabalho e espero que dê a ver algo do próprio processo… não me interessa especialmente ocultá-lo… ou deixar limpo o resultado.

MA: Tens uma casa de pernas para o ar. Que mensagem pretendes passar com essa “caixa” ao contrário?

JC: Tenho dúvidas quanto a “passar mensagens”, isto é, quanto à necessidade de ‘comunicar’ no trabalho artístico. Não procuro usar uma linguagem que torne inequívoca uma suposta troca entre quem produziu e quem vê, ao género emissor-receptor.

Há imagens que não sei bem de onde surgem, ainda que possa desconfiar ou reflectir sobre isso, claro. Mas o mistério tem o seu lugar. E prefiro deixar espaço em branco para quem vê; interessam-me muito essas outras possibilidades de leitura…

É preciso acreditar nos “poderes da pintura” (penso em José Gil), sendo que, enquanto artista ou fruidor, interessam-me mais esses ‘poderes’ sinéstesicos (que advêm de uma experiência física, presencial e ‘em aberto’ da obra) do que as eventuais qualidades informativas da arte. A reflexão pode ser suscitada sem mensagem clara ou verbalizável, a partir da fruição: do visual e do pictórico, do simbólico e não só, mas sem uma agenda prévia.

Mesmo quando se dá título a um trabalho ou a uma exposição, como esta, prefiro o campo aberto e a pergunta (um ponto de interrogação) do que o registo declarativo. Há demasiadas legendas no mundo.

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MA: Além das pinturas tens algumas maquetes de casas. Casas que abrem em diferentes sentidos e que abrigam diferentes ideias. Porquê essas maquetes?

JC: Sempre tive alguma dificuldade com a tridimensionalidade, com a modelação de formas, mas fui encorajado por uma amiga artista [Maria João Lopes Fernandes] a arriscar esse exercício, e depois também durante a própria residência [Susana Rocha, directora artística da Duplex | air].

Encarei as maquetes em papel como estudos para os desenhos/pinturas, acreditas? Como forma de explorar a simplicidade espacial destas ‘não-casas’ e suas variações, mais acessíveis ou mais inacessíveis, mais abertas ou mais fechadas, à procura de sinais contraditórios… o visível e o invisível, por exemplo.

De início, não pensei expor essas construções muito precárias, em papel pintado, mas durante a montagem achei que faria sentido no contexto específico onde estão, junto àquela tela de maior dimensão, numa sala mais escura, etc. 

Enquanto pintava, ainda na Duplex, fiz uma série de fotografias com o telemóvel, para registo meu. Curiosamente, ao descarregar as imagens achei que havia ali outra coisa… algo de fantasmagórico… as imagens e o digital transformaram por completo o ambiente interior daquelas maquetes. Acabaram por dar origem a uma breve série com a qual colaborei na rubrica “Espectrografias” do projecto GHOST — Espectralidade: Literatura e Artes (Portugal e Brasil) [IELT — FCSH-UNL].

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MA: Tens sempre uma linha estética muito bem definida no teu trabalho. Como interligas esta tua exposição com o teu trabalho em design, edição, etc? 

JC: Para ser honesto, acho que há pouca relação entre o trabalho apresentado na exposição e outros ofícios em que também me envolvo, como o da edição. Acho até que com este conjunto de desenhos/pinturas tento escapar ao ‘projectual’, em favor de uma experimentação mais descomprometida…

A coerência entre diferentes modos de expressão, por vezes, é excessivamente valorizada. Para mim, pelo menos, ela não é um objectivo ou algo que me preocupe.

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MA: Não assinas as tuas peças (pelo menos à frente). Tens algum motivo específico para não o fazeres?

JC: Visualmente perturba-me a assinatura, mais um signo ali…

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MA: Tens mais exposições em vista? Quais as novidades para breve?

JC: Para já, e nos próximos tempos, espero poder continuar neste diálogo interior/exterior, em pinturas como as maiores que estão na exposição. É como que entrar naqueles espaços e pintar o seu interior, desta vez. Estou a trabalhar nisso, mas ainda lentamente e sem qualquer exposição prevista. Quando exponho, mais do que fechar uma fase ou uma série, reflicto sobre o momento em que me encontro; é mais um modo de poder continuar, isto é, colocar novas perguntas.

Obrigada, João e muito sucesso!

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Space Quartet | Last Set

Space Quartet | Last Set

Podem ouvir e comprar o disco na página de bandcamp do Rafael Toral.

Numa review a um dos discos do Rafael Toral, escrevi que falhei sempre os seus concertos ao vivo. Este não podia falhar!
Assisti a este quarteto no Out.Fest, a 3 de junho de 2021, e escrevi sobre o concerto. Escrever sobre este disco é reviver o momento, com o distanciamento necessário para o ouvir com mais atenção, ir aos detalhes e reentrar no mundo do Rafael Toral. Ouvir o disco dá-me a liberdade de andar para a frente e para trás, de captar aquele momento em que o Nuno Morão fez um apontamento importante que ao vivo me tinha passado despercebido. Sim, acreditem que o Nuno Morão ao vivo tem destas coisas. Dialoga tão bem que só nos discos me apercebo de coisas absolutamente incríveis. Um dos bateristas que mais gosto de ouvir ao vivo na cena da improvisação.

Este quarteto tem uma energia muito própria e o Toral tem muito peso nesta questão. Entrar no seu mundo é permitirmos que a nossa cabeça embarque numa viagem complexa, com línguas diferentes e que nem sempre dominamos. É aprender sobre expansão e contenção, fluidez e resistência.

Começo a ouvir e mentiria se dissesse que não espero ansiosamente pela entrada das eletrónicas do Rafael Toral. A conversa entre o contrabaixo e o saxofone abrem o disco e começamos lentamente a deixar-nos conduzir. Continuo muito atenta ao contrabaixo do Hugo Antunes, mas hoje presto mais atenção a detalhes do saxofone do Nuno Torres. O Nuno Morão une momentos, interliga estações por onde passamos na viagem deste disco.

A viagem dura 1 hora e leva-me até sítios a que não fui no concerto ao vivo. Entre o térreo e o espacial, nunca nos sentamos descansados à espera do próximo transporte. Nos discos do Toral há sempre uma história de universos paralelos, dimensões diferentes, realidades que se cruzam e interligam.
Neste disco o fio condutor é claro, o diálogo entre os 4 músicos é fluido e não existe nenhum momento em que se percam e deixem de manter a conversa. Não há arrufos, quanto muito um diálogo mais aceso.

Uma pessoa muito próxima disse-me há alguns anos: “Não queiras chegar logo ao resultado final, aprende a aproveitar o processo”. Entre o concerto ao vivo e este disco passaram 2 anos. Agora ouço-o de forma diferente, com o distanciamento certo, e continua a entrar-me pelos ouvidos com a mesma delicadeza e beleza. É como se tivesse acabado de me sentar naquele auditório a 3 de junho de 2021.

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The Selva | Festival Causa Efeito

The Selva | Festival Causa Efeito

Festival Causa Efeito | 30 de junho de 2023 | Texto que engloba factos reais e um pequeno conto que escrevi enquanto ouvia o concerto | Fotos do Nuno Martins

É sempre intimista e envolto em momentos de redenção. O Ricardo Jacinto, o Nuno Morão e o Gonçalo Almeida são três músicos de referência na improvisação nacional. The Selva praticam um exercício complexo e incrivel de contenção que se vai dissolvendo ao longo de uma história que nos prende ao concerto. Ao aqui e agora.
É difícil parar a mente. Conduzem-me a memórias escondidas entre notas que teimam em apertar-me o peito. É mesmo difícil não ser absorvida pela magnitude do violoncelo do Ricardo Jacinto.

***
Tento manter-me na escrita do que vejo e sinto, mas surgem-me histórias, ideias e a caneta começa a deslizar incontrolavelmente pelo papel. Aqui vamos nós até ao conto.

***
Quando me recordo de olhar para o vazio de uma possível nota de suícidio, tenho a certeza que a decisão que tomei foi a correta. O vazio de uma caneta sem tinta. Talvez porque repetida e compassadamente fiz o mesmo movimento.

Baixar a cabeça. Rodá-la ligeiramente para o lado esquerdo.
Baixar a cabeça. Rodá-la ligeiramente para o lado esquerdo.

Até à exaustão do arco, à desobediência da baqueta, ao cansaço de quem dedilha cordas de aço.
O vazio de uma nota de suícidio.

***
Mantenho-me focada no Nuno Morão. Talvez porque me trouxe de volta ao térreo.

***
Afinal talvez goste de cá andar. Entre notas quentes, apesar da sofreguidão de outros tempos. Gosto de me atormentar com memórias robustas de mãos perdidas em coxas roliças.

***
O crescendo de intensidade dos The Selva é sempre delicioso.

***
Lábios molhados num copo de rum. Hoje, na verdade, é tequila.
O vazio de uma nota de suícidio por escrever. Alguma vez leste a tua nota de suícidio? Ris de quê? Ris porque não o concretizaste. Triste o que vive no silêncio de letras por escrever, frases que ficam em suspenso.
Suspendo-me. Olho-me de fora. Que triste figura.

***

Agora estou com o Gonçalo Almeida. Um lado mais pesado, mas cheio de subtileza.

***
Correr sobre gravilha antes de entrar num túnel longo e inesperado. A nota de suícidio continua no vazio. Grito sem grande sucesso. O vizinho martela incessantemente na parede contígua à parede do meu quarto.
Cabrão. Adia-me a nota de suícidio. Que puta de perseguição.
Ideias num corropio. E a nota que não sai. Dizias-me que seria fácil, que bastava querer. Mas e a nota que não sai.

Resta-me continuar com os pés cravados na gravilha, dentro do túnel, no vazio de uma possível nota de suícidio. Voltei a ter tinta na caneta. Fiquei sem papel.
O vazio de querer escrever uma nota de suícidio.

Esse vazio não vai ter fim. Voltei a ter papel. Fiquei sem tinta na caneta.

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  • Foto de Nuno Martins | The Selva | Festival Causa Efeito
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Desconfinei as palavras. Um texto em memória de Juva Batella.

Desconfinei as palavras. Um texto em memória de Juva Batella.

Em abril de 2022 fique sem palavras. Acho que as recuperei este ano. Só agora sei exatamente o que quero dizer e como quero dizer. Quis a vida que me cruzasse com o Juva durante a pandemia. A mão que me levou até ele foi a da Rosane Nunes, fundadora da Editora Raíz, atual Cambucá.

A Rosane convidou-me para escrever um conto para a colectânea Conto em Casa. Aceitei de imediato sem saber muito bem o que esperar de mim. Estava a viver um período complicado. A pandemia, a ansiedade, o medo, a auto-pressão de manter o Covidarte em funcionamento, o mestrado, a maternidade… Tudo isto fechada em casa, com medo de um vírus ainda muito desconhecido e com as emoções à flor da pele. 

O Juva iria ser uma lufada de boa energia que iria entrar pela minha janela. Mas isso eu ainda não sabia. A Rosane diz-me que gostava que apresentasse o conto do Juva, O espaço do meu tempo, numa emissão em direto e ele apresentaria o meu A caixa da Pandora. Mais uma vez não hesitei, mas instalou-se o peso da responsabilidade.

Comecei imediatamente a pesquisar sobre o Juva, a ler textos dele, e senti-me pequenina. Muito.

Combinámos uma sessão os dois para nos conhecermos, falarmos de nós, contarmos as nossas histórias, partilharmos o bom e o mau. Os tempos de tormenta e os dias de sol de quem escreve. A imagem romântica daquilo que fazemos. “E aí, Margarida!”. Começou assim a nossa chamada de vídeo. Estávamos em novembro de 2020, ele de t-shirt no Brasil e eu de gorro em Portugal.

“Acreditas que fiquei sem sentir cheiro algum desde que tive Covid? Nem o lixo mais fedorento”. Falar com ele era tão fácil. As futilidades e os temas mais robustos tinham a mesma intensidade na nossa conversa. “Fui ver o teu site. Li o que escreves. Tenho perguntas para te fazer.”
Fiquei com o coração acelerado. “Gosto do que escreves. Da forma crua como escreves”. Leu-me textos meus. Apanhou-me de surpresa. “A tua escrita lembra-me os contos da Lydia Davis. Conheces?”. Respondi-lhe que não. “Tens de ler. Vais identificar-te.” 

Tempos mais tarde encomendei, li, e ele tinha razão.

No dia 16 de novembro de 2020 riamos juntos em direto. “Queria iniciar com uma narrativa breve/um mini conto/um texto poético (…) da Margarida que me incomodou muito. No sentido mais potente da palavra”.

“Desconfinei-me.
Desconfinei-me de quem era. De quem fui.
Isolada, desconfinei-me.
Desconfinei-me da rotina que conhecia até então.
Confinei-me a levar um dia de cada vez. Sem planos, sem ambições.
Desconfinei-me de quem era.
E assim irá ser até poder voltar a confinar-me a uma vida que conheça de trás para a frente e de frente para trás”.

O Juva não sabe o que este momento representou para mim. Talvez porque nunca lho disse. Em novembro de 2020 o Juva trouxe-me confiança, boa energia, sorrisos e amizade. Mais tarde, em fevereiro de 2021, encontrámo-nos pessoalmente em Portugal. Disse-lhe que gostava de escrever algo com ele. Nunca aconteceu. Em 2022 fui surpreendida pela mensagem da sua morte. Fiquei sem saber o que dizer. Talvez por achar sempre que teremos mais tempo uns com os outros. Talvez porque deixo sempre tantas mensagens por enviar e tanta coisa por dizer a quem gosto, a quem se cruza comigo e acrescenta sempre algo mais.

O Juva tinha uma energia muito própria. Uma forma de me encorajar que ainda não tinha sentido. 
A ti, Rosane não quero deixar nada por dizer. Em vida! Obrigada por teres cruzado o meu caminho com o do Juva. Obrigada por me confiares a entrevista a este homem que eu desconhecia. Obrigada por teres estado em Portugal, rirmos juntas e acreditares no meu trabalho.

A ti, Juva. Mais de um ano após a tua morte, voltaram-me as palavras. Posso agradecer-te o teu olhar sobre os meus textos. A tua entrada no meu Mundo. As palavras têm o seu tempo. O tempo que demorei a digerir as emoções. Demorei, mas está cá fora. Desconfinei as palavras e sei que gostarias de as ler.

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Fixation Trio (André Hencleeday, Hernâni Faustino e Felice Furioso)

Fixation Trio (André Hencleeday, Hernâni Faustino e Felice Furioso)

SMUP, 11 de maio de 2023, 21h30

Há saudades que se matam entre ruídos e intensidades. Podia contar-te aqui a eloquência dos meus dias. Não há absolutamente nada de diferente. Na verdade tudo se transformou naturalmente.

A tempestade sobre as laranjeiras frondosas. Mudam-se os tempos, mudam-se as carpetes. Agitam-se brisas revoltas em memórias. Doem-me os músculos da cara, em redor dos lábios, outrora suculentos. Podia contar-te que no passar do tempo não dei por nada. 

Sentei-me sossegada a observar as gaivotas agitadas à beira mar. A tempestade deixou as laranjeiras e apoderou-se da duna onde me deixei ficar.

Espinhos nos pés, mente afiada.

Expurgar. Parece-me a palavra acertada.

Expurgar secreções antigas, acumuladas, enraivecidas. Podia contar-te que a agitação das tuas mãos em mim me faz correr ao fundo do poço das memórias.

Aquele sabor a gengibre e lima, o cheiro que tenho de ti. Notas de sândalo que me sufocam como um saco preto metido na cabeça.

Ora quando te calas, ora quando teimas em manter cerrada a tua mão na minha boca. Temos algo em comum. 

O túnel vazio que se enche de drama. Uma ou duas chapadas depois isso passa. Chapadas dadas com as costas da mão. Entre 2 troncos de pinheiro bravo. Cravada nas silvas que se enterram na minha pele branca.

Tingem-me de vermelho. Pequenos rios que escorrem quentes pelo meu corpo. Gosto desta sensação. Peitos eretos ao frio, o sangue quente que escorre, os pés descalços manchados pela terra molhada. 

Sinto um arrepio que me percorre dos pés até às nádegas. Ris-te enquanto me acaricias a barriga e me lambes, com afinco, o pescoço.

Ouço ao longe sussurros. Continuamos cravados nas silvas. Do miradouro vejo as gaivotas enquanto continuas incontrolável. Jorras o que em ti está em demasia.

Expurgas memórias. 

Eu contemplo e deixo que o quente me guie até ti. Gengibre e lima entre os meus lábios. Entre os meus seios. Entramos num ciclo vicioso. 

Eu em ti

Tu em mim

Não há melhor dança que aquela em que um pé é drasticamente pisado. A dor une-se subtilmente ao prazer. 

Acordo molhada. Grito com os dedos dentro de mim. Deitada olho para cima. A laranjeira filtra o sol que bate na minha cara.

Assim se expurga.

Assim se expurga.

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Exposição Poéticas Sensíveis à Luz

Poéticas Sensíveis à Luz

(27 a 30 de outubro de 2022)

A sinergia entre o Ricardo e a Margarida surgiu há praticamente uma década. Encontraram-se pela música e conheceram-se mais intimamente pela arte. O caminho dos dois cruza-se na forma como o Ricardo vê o mundo e a Margarida o transcreve.

Poéticas Sensíveis à Luz é um trabalho conjunto com fotografias do Ricardo Leiria e textos da Margarida Azevedo e da Pandora Leiria. A Pandora tem um papel determinante na evolução dos projetos. Influencia constantemente a forma como o Ricardo perceciona o mundo e os textos da Margarida ganham outras camadas de interpretação.

Uma exposição que alia tempo, espaço e luz à narrativa e à poesia. Duas visões que convergem numa linguagem única. Uma exposição que resulta de palavras que caem no preto e branco. Um projeto em constante atualização.

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Rui Zink | A Instalação do Medo

Rui Zink | A Instalação do Medo

Nem sempre sei por onde começar. Talvez pela demora, ou então pelo momento em que finalmente peguei no livro e decidi que ia ser de empreitada.

Tenho A Instalação do Medo, de Rui Zink, desde 16 de junho de 2021. Decidi pegar nele e lê-lo “a sério” na última semana de julho de 2022. Sentada à sombra de mini na mão.

O Rui consegue que qualquer um de nós mantenha o sorriso no rosto enquanto percebe que vive, boa parte do tempo, subjugado ao medo. Em alguns momentos do livro senti-me verdadeiramente tola, mas atenção: tola no bom sentido se é que tal coisa existe.

A minha primeira página dobrada é a 40. E porquê? Porque me começo a rever a partir dessa página. O terror do primeiro dia de escola. O medo, a ansiedade, a inquietação. E no dia em que escrevo isto ainda me recordo do choro incontrolável no meu primeiro dia de escola. Escola essa que agora é do outro lado da rua onde vivo e que me parece muito mais pequena que há 30 anos atrás. Cá está a tal tolice que há pouco vos falava.

“As crianças não compreendem a crueldade dos pais (…) Mas há uma violência, um calafrio, uma traição, um trauma (…)”.

Fiquei rapidamente agarrada às páginas. Tem tanto de Rui Zink dentro deste livro. Já fui aluna dele e passagens como “A senhora sabe o que é um soneto, não sabe? (…) Um soneto é uma forma poética de catorze versos, criada no Renascimento (…)”, é como voltar às aulas dele em que damos uma gargalhada e logo a seguir estamos a aprender mais qualquer coisa, assim como quem nem dá por ela.

Ri-me muito — sim, sou dessas que ri destas coisas — com o facto de me aperceber com a leitura que sou demasiadas vezes dominada pelo medo e na verdade nem me apercebia assim tanto que vivia debaixo desta instalação constante.

O livro tem os apontamentos gráficos nos sítios certos. Apontamentos no texto que nos arrancam sorrisos matreiros e nos ajudam à leitura: “É estranho, agora que o Sousa parece falar em itálico: — Provavelmente vamos ter de sair da moeda única”.

Na página 114 soltei a verdadeira gargalhada. Comparar velhos a pombos e reduzir os velhos à posição que ocupam na atual sociedade. Só dão trabalho, despesa e “ao contrário dos pombos, nem para cagar uma estátua servem”. Velhos e crianças são dois pontos difíceis neste país. Onde os pôr quando estamos ocupados a ganhar uma ninharia nas 40 horas semanais de trabalho? O Estado não tem lares, nem creches, nem apoio suficientes para os nossos pais, nem para os nossos filhos. Mas isto agora também não interessa nada.

Continuando no livro.

Esta reedição teve alguma reescrita e “Oito mil milhões de humanos sobre a terra. Obviamente, algum tinha de acabar por comer um pangolim” deve ser um acrescento à edição de 2012 (não li essa edição). Se existiu momento em que a malta recebeu de porta escancarada a instalação do medo foi com a pandemia. Eu sei que recebi e ainda hoje penso em como os técnicos da instalação foram tão bons profissionais.

Numa próxima reedição virá uma nota sobre a varíola dos macacos ou outra ameaça qualquer que nos irá atormentar em breve, ou talvez não (a tormenta vai lá estar, o Rui é que pode não escrever sobre ela).

Nesta edição de 2021 a verdadeira tormenta está mesmo bem representada e o medo continua atual — os Mercados.

Gostei verdadeiramente deste livro de Rui Zink. Acho que daria uma excelente peça de teatro, mas isso ele já sabe ou não fosse ele quem o escreveu.

O ritmo de leitura é incrível, os diálogos em nada são monótonos e o humor é refinado e roça o sádico. Que mais se pode querer para este início de setembro?

Aproveitem que o autor vai estar este domingo, 4 de setembro, às 17h, no Pavilhão da Porto Editora, na Feira do Livro de Lisboa, em sessão autógrafos. Vão, sem medos!