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Ikizukuri e Susana Santos Silva | Jazz em Agosto

Ikizukuri e Susana Santos Silva | Jazz em Agosto

A primeira vez que escrevi sobre Ikizukuri foi em novembro de 2018. Tinha acabado de sair a K7 Hexum, pela editora Zona Watusa. Era fácil perceber que tinha ficado fã de Ikizukuri. A sua sonoridade era a minha onda. Na altura terminaria a minha review assim : “Os Ikizukuri com o seu Hexum vão devorar-te os ouvidos e deixar-te com uma tremenda vontade de ouvi-los ao vivo.

Curto, intenso e que nos tira o fôlego. Que mais se pode pedir?”.
Em dezembro desse mesmo ano deram 4 concertos em Portugal. Se bem me recordo, falhei todos.
Não podia falhar outra vez.

Passados 3 anos, em 2021, o Gonçalo convidou-me para escrever as liner notes do disco ─ que ontem era o mote do concerto no Jazz em Agosto. A minha resposta foi imediata. Não era preciso pensar muito sobre se aceitaria escrever as liner notes de um disco a que aos Ikizukuri se juntava a Susana Santos Silva (que no Out.Fest deste ano deu um concerto muito bom e sobre o qual escrevi).

Recebi o disco, editado pela Multikulti, e ouvi-o de rajada. Fiquei rendida e o que escrevi saiu de jorro (sinal que foi sem dor que o fiz).

Ontem sentava-me no auditório da Gulbenkian com as expetativas muito elevadas.
Decidira não levar caderno. Não escreveria sobre o concerto, tal como não fiz review do disco. Pensava que não fazia sentido se tinha escrito as liner notes. Achava que não seria muito correto da minha parte fazê-lo. Pensava, mas já não penso. Achava, mas já não acho.

Ontem assisti a um concerto impactante. Tinha uma caneta e remexi na mala em busca de uma folha. Um talão de compras tornaria-se o melhor aliado da minha memória. Afinal não resistiria a escrever. Escreverei no presente, como se ainda lá estivesse e utilizarei apenas o nome próprio de cada um, sem apelidos, sem formalidades.
Abre-se o pano de fundo e as árvores agitadas pelo vento tornam-se a tela do concerto. Nenhum VJ do mundo faria um trabalho melhor que este ─ este é o meu pensamento. A vida que se agita lá fora enquanto os Ikizukuri e a Susana se preparam para começar.

Sinto-me pequenina, sentada na fila da frente. O palco é grande, o cenário avassalador e os músicos estão alinhados na perfeição. As máscaras mantêm-se na cara do Gonçalo e do Gustavo.

Começam. Os pássaros lá atrás voam num corrupio entre a luz e o vento, as copas das árvores agitam-se descontroladamente. Os Ikizukuri e a Susana começam a guiar-nos para um ambiente cada vez mais pesado, mais intenso, e o caos da tela natural acompanha-os. Eles não sabem que atrás deles têm um filme a decorrer que ilustra na perfeição cada som, cada nota, cada grito que sai da bateria do Gustavo, do baixo elétrico do Gonçalo, do trompete da Susana e do saxofone do Julius.

Vamos para o segundo tema e percebo que está a ser bom. Como? Tenho dores na prótese que tenho na cervical ─ sinal que estou em semi headbanging.

Os ambientes sonoros são incríveis. As máscaras saem das caras do Gonçalo e do Gustavo. Finalmente. Começam a estar mais soltos. Continuamos. Olho em volta e não consigo decifrar o que vai na alma de quem está sentado do meu lado direito. Decifro pelo bater do pé do senhor do meu lado esquerdo que também ele começa a soltar-se.
Não sei quanto tempo passou. Recuso-me a olhar para o relógio, O Gonçalo roça o braço do baixo pelo chão, o seu corpo deixa-se comandar pelo lado mais dark do momento, o Gustavo troca breves olhares cúmplices com ele, a Susana traz para aquele momento a sua subtileza e agressividade (cada vez me apaixono mais pela sua sonoridade) e o Julius continua genialmente a puxar pelo saxofone.

Escrevo no meu talão: “nem só de estrangeiros vive o jazz”. Damos demasiado valor aos nomes internacionais, quando os músicos portugueses são criativos e excelentes tecnicamente.

Anoiteceu e o cenário lá fora está mesmo ao estilo do que se ouve cá dentro.
Volto ao talão para escrever: “arritmias”. As arritmias são mesmo minhas e não deles. O meu coração está arritmado, acelerado e quando isso acontece num concerto é bom sinal. Desarmam-me, fazem-me respirar fundo e verificar as pulsações.

Os aplausos anunciam que estamos a terminar. O Gonçalo agradece. Eu recomponho o meu sistema cardiovascular. Ikizukuri mexe-me com as entranhas.
Ponto final.

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Twelve Bass Tunes | Hernâni Faustino

Twelve Bass Tunes | Hernâni Faustino

Podem ouvir e comprar aqui.

Twelve Bass Tunes é o disco de estreia do Hernâni Faustino a solo.

12 temas, 12 histórias.

Entro em sequência, determinada que este disco a solo do Hernâni me irá fazer ficar rendida. E em madrigal desarma-me. O Hernâni é um músico incrível que faz com que consigamos sentir a profundida do seu contrabaixo e a intensidade das suas respirações.

O fio condutor do disco é harmonioso, divinalmente bem conseguido. O ofício é difícil de descrever. É conturbado, e deixa a porta aberta para o Tríptico da Virgem de Lamego. Esta é uma das melhores malhas deste disco. O deixar soar, o deixar respirar, o ambiente. Quem acompanha o seu percurso sabe a entrega deste músico a cada desafio em que se envolve. Este solo é, talvez, um dos maiores desafios da sua carreira. Sozinho, sem redes nem artifícios, despido, transparente.

É para esta imagem da nudez do músico, da nudez da sua entrega que o Tríptico da Virgem de Lamego me leva. Voltamos à azáfama num modo justo e o meu pensamento deriva para o Sei Miguel. Produtor neste disco, músico exemplar, ouvido afinado e gosto apurado. Não imagino ninguém melhor para estar ao lado do Hernâni neste disco enquanto produtor.

Deixo que o ouvido continue atento. Deixo que o solo siga o seu rumo, sem tentar entender intenções, sem tentar decifrar porquês, sem querer saber a história. Crio a minha própria história. Por vezes mais triste e melancólica, outras mais assertiva e determinada. É uma história construída segundo a segundo, corda a corda. O arco que percorre as cordas é onde mantenho o foco.

Saltito em luar, experimento manter-me sem procurar o que virá a seguir até chegar a EIA EIA. Ritmada e cheia de groove decido olhar para o alinhamento e, talvez pelo nome, espero por com Vénus: o Hernâni fecha o disco com aquela que é, na minha opinião, a melhor malha. Intensa, pesada, sublime e sexy.

Uma linguagem própria, um fio condutor irrepreensível, um disco pelo qual ansiava. Na lista de 2021 sem margem para dúvidas. E a editora é cada vez mais promissora: a Phonogram Unit começa a dar cada vez mais passos interessantes.

Ficha Técnica

released July 23, 2021
Hernâni Faustino / double bass

Recorded (16.01.20) and mixed at Namouche Studios, Lisbon, by Joaquim Monte
Mastered by Simon Wadsworth
All music by Hernâni Faustino
Produced by Sei Miguel
Executive production by Phonogram Unit
Photography : Nuno Martins
Design and artwork : Sofia Faustino

Special thanks to my Family and Fala Mariam

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Patifes | 28 de junho de 2021

Patifes | 28 de junho de 2021

Pouco vos posso escrever sobre este concerto de ontem. Com excelentes músicos e uma atriz excecional só podiam surgir os Patifes!

Presença, cumplicidade, cuidado e ensaios — são estas as palavras-chave deste grupo de pessoas. Matei saudades de uns, vi outros pela primeira vez.

Estava muito curiosa com o resultado. Quem me conhece sabe que a música e as palavras são pontos essenciais no meu trabalho.

Entro a medo. Medo de me desiludir.
Spoken Word?
Irá a Teresa Sobral cantar?
Ai, porra. O que devo pensar dos Patifes?
Tem Lopes, tem guitarra acentuada. Tem Hernâni, tem groove. E o que esperar de quem não conheço de forma tão próxima?

Entro, a medo.

A máscara que me embacia os óculos não me deixa tomar a devida atenção aos pormenores do que se passa.
A roupa distrai-me. Esse é o único ponto que não puxa por mim.
A voz e a presença da Teresa deliciam-me. Mulher de garra. Atriz.

É isso! Os Patifes são o melhor da música com o melhor do teatro. Dizer textos, interpretá-los, rir do que nos dizem, refletir sobre eles. Os textos. Essas palavras escritas pelo Gonçalo M. Tavares que a Teresa diz e sente.

Volto aos músicos. Eu venho do rock. Delicio-me com o baixo elétrico naquela que é para mim “A” malha do fim de tarde. Sorrio com a presença incontornável do Lopes. Delicio-me com o Miguel na bateria e deixo-me levar pela guitarra do Miguel Fevereiro.

Ai, porra. Os Patifes vieram para ficar.
Sala esgotada. Amigos que se voltam a cruzar.

Adicionaria à ficha técnica a entrega do Lopes ao violino. É só isto que tenho a acrescentar. Isto e a inveja que tenho dos ténis da Teresa Sobral!

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Junichirō Tanizaki | Naomi

Junichirō Tanizaki | Naomi

Obsessão, paixão e ilusão. Romance com descrições bem ao estilo de Junichirō Tanizaki. Naomi.

Pele branca, pés fascinantes e uma sensualidade atroz. Esta é a mulher que enfeitiça Jōji.

Jōji tem 28 anos quando se cruza com Naomi de apenas 15. O seu objetivo? Ocidentalizar Naomi e torná-la a mulher perfeita. Não olha a despesas para atingir os fins e é ridicularizado durante a maior parte do processo.

Usado, gozado e humilhado. É assim que vejo Jōji. É assim que o interpreto.

Não poderia escrever sobre este livro sem concordar que “quem vê caras não vê corações”. A pureza da pele branca de Naomi não reflete a sua verdadeira essência.

As descrições dos espaços e dos personagens são fluídas e apesar de regulares e longas não cortam, de forma alguma, o ritmo de leitura. Ansiei diversas vezes pelo parágrafo seguinte, pela próxima página, pelo próximo pensamento desviante do autor.

Na história, as danças de salão, que floresceram no Japão após a I Guerra Mundial, assumem um papel de destaque na descrição de costumes ocidentais. A dança, a sensualidade e a ostentação num corropio de palavras.

Ao longo do romance é visível a obsessão de Jōji com os pés de Naomi. A sua atração por Naomi e a forma como o corpo de menina se transforma num esbelto corpo de mulher é um tema recorrente.

O enredo de Naomi leva-nos, por vezes, para o lado depravado da mente de Jōji. Tem passagens duras e sentimentos como a raiva são retratados em frases simples e pequenas: “O que estás fazer? Humilhas-me! Relaxada! Vadia! Puta!”. A imoralidade é retratada pelo autor de forma bruta e direta.

O final não é surpreendente, mas é triste e transporta-nos para a fragilidade humana e a manipulação do outro.

Sem dúvida que a leitura de Naomi flui com maior facilidade que a de Diário de um Velho Louco.

Pontos em comum: a mente arisca e sexual de Junichirō Tanizaki. Sobre o autor (parte da nota retirada do livro): Tanizaki nasceu em Tóquio, em 1886. Fez parte da sua educação as idas regulares ao teatro. Estudou Literatura Japonesa em Tóquio e acabou por ser expulso da Universidade devido à vida boémia que levava. Casou-se, em 1915, com uma antiga gueixa e esteve envolvido num triângulo amoroso com Satô Haruo, um escritor seu amigo.

Separou-se e casou-se mais três vezes. Sempre com mulheres mais novas que ele.

Naomi foi escrito em 1923 e foi o seu primeiro romance importante. Uma obra que vale a pena ler e reler. Tanizaki faleceu a 30 de julho de 1965.

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Out.Fest | 03 de junho de 2021

Out.Fest | 03 de junho de 2021

Ir para texto do concerto da Susana Santos Silva

Ir para texto do concerto do Rafael Toral


Impermanence

Poucas palavras. Na verdade, não são precisas.

No Anfiteatro Paz & Amizade corre uma brisa fresca enquanto a Susana Santos Silva entra em cena e nos dirige poucas palavras. Na verdade, não são precisas. “Há muito tempo que não tocávamos assim com público”. Olho em redor e são muitos os rostos tapados com máscaras. Muitos. Isso é o mais importante. Desconfinamos com cuidado. Com distância e de máscara colocada. E a cultura acontece naquele anfiteatro. Com tanto tempo distante destas andanças sinto que desaprendi a estar focada num concerto ao vivo, sem fones, sem um ecrã, sem pensar em ir só ali pôr roupa a lavar ou tratar do jantar.

Há muito tempo que não via um concerto. Há muito tempo que não escrevia no calor do momento. O último disco do quinteto, editado pela Porta-Jazz, foi meio caminho andado para que as expectativas estivesse elevadas.

Trompete, saxofone, bateria, baixo e teclas.

Auditório composto.

E a Susana. Acompanho o seu percurso e o salto e evolução são enormes. Respeito.

Quando dou por mim já estamos nos aplausos e prontos para entrar no segundo tema. Entro num bar boémio e decadente. Um fim de tarde de primavera com uma brisa demasiado fresca. O som vai-me guiando. Uma pessoa de cada lado. Troco olhares com alguns dos que me rodeiam. Um som uníssono que me entra pelos ouvidos. O baixo elétrico que, tão bem, destabiliza o momento. A bateria que se mantém no silêncio. O helicóptero que decide passar e tornar-se o sexto elemento por breves momentos e se funde com os teclados.

Assim entramos no terceiro tema.

Dou por mim no meio de um filme tipo Gato Preto, Gato Branco, do Kusturica, ou Feios, Porcos e Maus, de Ettore Scola. Nesta altura do concerto o Torbjörn Zetterberg torna-se o centro do filme.

Continuo esta viagem e não me apercebo de quantos temas passaram. Começa uma malha mais pesada, um ambiente soturno. Perco-me no tempo outra vez. Continuo a viajar.

Aplausos finais. Quando os concertos são bons perdes a noção do tempo. A quem não foi fica a dica: os discos de Impermanence também vos farão viajar.


Rafael Toral Space Quartet

Anoiteceu e entrei no Auditório. Há algum tempo, mais precisamente em 2019, escrevi uma review a um dos discos do Rafael Toral. Admiro-o, respeito-o e sou fascinada pelo o que desenvolve.

Auditório, máscara e máquina de fumos: tudo uma questão de hábito (trabalharei para que me consiga acostumar).

Acho que é a primeira vez que vejo o Nuno Torres ao vivo (devia ter vergonha de assumir isto), o Nuno Morão delicia-me na bateria e quem acaba por me surpreender ao longo do concerto é o Hugo Antunes (contrabaixo). Talvez por sentir que todos estão contidos à exceção dele. Talvez porque não esperava este registo do Hugo. Também eu tenho ideias pré-concebidas (quem diria).

A presença do Rafael Toral é inconfundível. O seu set de material, a forma como se movimenta em palco, as suas expressões. Sinto a falta de um momento de loucura, de libertação total, de explosão. Porquê? Não sei. Apenas espero que esse momento aconteça. O concerto cresce, a sua dinâmica intensifica-se, mas não explode. E não tem nada de mal. Considero ser uma necessidade minha ao fim de tanto tempo confinada ─ rebentar.

O Rafael tem a capacidade de nos levar para outros universos e o Nuno Torres vai desbravando pequenos caminhos onde, juntos, se complementam.

Acabou depressa, como tudo o que é bom.

  • Fotografias de Maria Santos e Rui Baião
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Junichirō Tanizaki | Diário de um Velho Louco

Junichirō Tanizaki | Diário de um Velho Louco

Dor, obsessão, depravação e sofrimento. Tudo isto com um humor requintado e ao estilo de Junichirō Tanizaki. Utsugi – setenta e sete anos. É este o nome e a idade do velho louco de Junichirō Tanizaki. Utsugi escreve no seu diário com uma frequência obsessiva. As terríveis dores na mão não toldam os seus pensamentos. Pensa na sua própria morte com o mesmo ritmo que planeia o seu descanso final. Planeia o seu descanso final com o mesmo grau de depravação com que pensa na sua nora.

A degradação física acontece a um ritmo rápido e as suas fantasias sexuais são cada vez mais intensas. Talvez para compensar a quebra de vigor que acompanha a velhice. A sua nora, Satsuko, excita-o ao ponto de o matar. As descrições dos momentos são intensas e levam-nos até ao pensamento mais íntimo de Utsugi. Acompanhar o que escreve no diário é acompanhar uma mente ativa num corpo sem saúde. É perceber que na velhice o desejo mantém-se apesar do corpo não corresponder. A imoralidade é retratada pelo autor de forma delicada e divertida.

O início da leitura é difícil. Os nomes dos personagens são japoneses e não nos são familiares, mas com o passar das páginas os nomes tornam-se parte do texto e a leitura é, gradualmente, mais tranquila. As tradições japonesas e as referências ao teatro Kabuki são uma constante e aguçam-nos o interesse pela cultura japonesa.

O final não foi o esperado e o impacto de toda a história, na minha opinião, perde-se, mas é, sem dúvida, um livro inesquecível. Sobre o autor (parte da nota retirada do livro): Tanizaki nasceu em Tóquio, em 1886. Fez parte da sua educação as idas regulares ao teatro. Estudou Literatura Japonesa em Tóquio e acabou por ser expulso da Universidade devido à vida boémia que levava. Casou-se, em 1915, com uma antiga gueixa e esteve envolvido num triângulo amoroso com Satô Haruo, um escritor seu amigo.

Separou-se e casou-se mais três vezes. Sempre com mulheres mais novas que ele.

Tanizaki faleceu a 30 de julho de 1965.

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Afonso Cruz | O vício dos livros

Afonso Cruz | O vício dos livros

Para quem acompanha o que o Afonso Cruz escreve, rapidamente compreenderá a essência deste livro.

A ilustração da capa (e conheço algumas das interpretações dadas por alguns conhecidos meus) é o meu ponto de partida. Para mim é representativa das memórias e vivências do passado, da reflexão sobre o presente e os olhos postos no que o futuro nos poderá reservar. Assim nascem as histórias. Continuo sem saber se terá sido esse o intuito do autor (e já o ouvi falar sobre este livro em pelo menos 3 circunstâncias), mas esta é a minha interpretação. Talvez daqui a uns anos olhe para esta capa e veja algo totalmente diferente. Veremos.

Antes de passar ao conteúdo existem outras duas coisas que me agarram a este livro: as cores e o cheiro do papel. Sim, para mim estes são dois dos pontos (além do conteúdo e do gosto que tenho pela leitura) que alimentam o meu vício dos livros.

Gosto da cor, mas gosto particularmente do cheiro dos livros. Os novos têm o cheiro peculiar do papel atual, do tipo de impressão, da colagem. Os velhos têm o papel usado, folheado, o cheiro por vezes a bafio. Acho que O vício dos livros será um daqueles livros que irá envelhecer bem. Não sei se quem me lê compreenderá o que quero dizer com isto de um livro envelhecer bem, mas em poucas palavras é o mesmo que se passa com qualquer um de nós. Ficamos velhos, ganhamos um determinado cheiro característico da idade, somos caixinhas de histórias. Assim são os livros e este ao envelhecer manterá intactas as histórias de quem se cruzou, em determinado espaço e tempo, com o Afonso, e apenas mudará o cheiro que o leitor dá a essas histórias. Neste momento o cheiro que lhe dou é novo e fresco.

Se a escrita reflete o seu escritor, o Afonso tem tanto de simples como de complexo. A forma aparentemente simples com que escreve este livro é, na verdade, de uma grande complexidade. O difícil é fazer parecer que se escreve com uma perna às costas, quando se tivermos um pouco de atenção percebemos a quantidade de reflexões e conhecimento que dão vida a cada história. Agarra-nos e quando damos por ela terminámos o livro.

Existe um ponto que faz com que o Afonso me faça ficar agarrada à leitura deste livro: o sentido de humor. Quando lemos e vamos rindo e sorrindo sabemos que um dos exercícios mais difíceis de escrita foi conseguido — passar para o papel o sentido de humor.

O Afonso Cruz viaja, conhece, lê, escreve, observa e absorve. No fim apresenta-nos, de forma deliciosa, as histórias que experienciou.

O vício dos livros é, também, para quem não tem o vício dos livros. É um livro que apresenta à pessoa que não tem tempo para ler os mundos que perde ao não ler. Logo é um livro que mesmo a pessoa que não tem tempo para ler deverá ler. A leitura é rápida e não precisa de muito tempo para o fazer. Basta que quando se estica no sofá não ligue a televisão e utilize duas horas do seu tempo a vislumbrar o que um livro lhe pode trazer: ligações, relações, histórias, paixões e saber.

“Um poeta, quando escreve um poema e levanta a folha onde o escreveu, descobre uma infindável pilha de poemas onde foi escrita toda a poesia que precedeu o seu poema, e ao pousar essa mesma folha verá que já contém o peso de incontáveis poemas escritos sobre aquele que acabou de escrever”.

Este livro “bateu-me”. Talvez porque avivou algumas das minhas memórias, histórias e até fragilidades. A voz que acompanha cada texto é diferente na minha cabeça. É a voz que dou às pessoas com que o Afonso Cruz se cruzou. Imagino-as e ele nem sequer as descreve em profundidade.

Mas, imagino-as.

Na verdade considero que o Afonso Cruz é viciado em sítios, pessoas, paisagens, cheiros, sons. E é isso que nos vicia nos livros.

O vício dos livros não são apenas histórias de vida do Afonso Cruz, são também factos sobre a literatura e as reflexões do autor sobre esses factos. São disso exemplo: “O poeta que foi assassinado pelos próprios livros” e “Bibliotecas”. Além de viajarmos, aprendemos.

Sim, é um dos livros que irei reler quando o papel já tiver aquele cheiro característico da idade. Mais um para o meu vício.

Nota: nesta altura interrogo-me (coisa que me acontece sempre que escrevo sobre música e livros) se a minha interpretação do que li e/ou ouvi vai ao encontro da intenção do autor. Na verdade esta nota não acrescenta nada, mas gosto de pensar nisto.

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Nuno Mangas-Viegas | A Noite de Ferros Feita e Súbito Silente

Nuno Mangas-Viegas | A Noite de Ferros Feita e Súbito Silente

Decidi que seria com o trabalho do Nuno Mangas-Viegas que iria iniciar o “Livros aos meus pés”. Neste primeiro texto irei dar-vos a conhecer dois livros que devorei em pouco tempo.

Que o Nuno me aguça a vontade de entrar no mundo dele, já é do conhecimento público. Cruzei-me com ele em 2020 no mundo digital. Ainda eu não sabia que ele era grande amigo de um amigo meu e já lhe seguia as pisadas. Engraçado dizer “de um amigo meu” quando na verdade esse amigo meu também se tornou amigo pelo mundo digital e só mais tarde presencialmente (culpa do Covidarte e por sua vez da pandemia). Mas vamos lá ao que interessa.

O Nuno esteve sempre à distância de um clique. Comecei por estar atenta ao seu trabalho com fotografia e comentei aqui em casa que achava ser um excelente convidado para uma exposição no Covidarte. E assim foi.

Quis a nossa empatia e as pessoas que nos rodeiam (avé João Sousa) que os nosso caminhos se voltassem a cruzar. Juntos no disco “Árvore” do João Sousa em que dou letra e voz ao “Fruto” e o Nuno é autor das fotos e da conceptualização do disco.

Voltemos ao motivo deste texto: os livros do Nuno Mangas-Viegas.

Os dois livros são edição de autor e quem me conhece sabe o quanto admiro, respeito e apoio quem faz as suas próprias edições. Escreveu-me o Nuno que a ideia base do seu último livro — Súbito Silente — surgiu da exposição no Covidarte. Após a leitura do livro, a sensação que tenho é a de dever cumprido, mas já lá vamos. Antes de passar ao Súbito Silente tenho de vos falar sobre A Noite de Ferros Feita.

Recebi este primeiro livro do Nuno, em 2020, como forma de me mostrar a sua empatia e agradecimento. Enviei-lhe um zine Mecónio e retribuí o carinho.

E em pouco tempo recebi fotografias do zine na praia, com a imagem de marca do Mangas-Viegas — as tenazes (aconselho-vos a seguirem a página o_paraquedas_de_icaro para perceberem do que falo).

Li A Noite de Ferros Feita de uma assentada. A poesia do Nuno agarra-nos, faz-nos pensar, querer ler mais.

“Não recordo se os ossos ou os frios lábios,

se os postigos e a louca sedução dos candeeiros

sobre o álcool das noites a sul,

ou mesmo se a chuva sobre os pianos da estação,

mas algo me escreveu no corpo

que a ordem é peregrina do caos.”

Entrei no Súbito Silente, em 2021, com as expectativas elevadas. E não me desiludi. É envolvente, carnal, real.

Se gostava do primeiro livro, adoro o segundo. Mais intenso, com frases que geram imagens fortes. Identifico-me com as palavras, com a cadência, com os sons.

“Perfumada de canela

chegavas fria aos pomares da manhã.

O teu corpo dançava a música

da chuva e dos caminhos.”

Para quem não conhece os livros do Nuno, e ao reler este texto, sinto que o que escrevo não lhe faz jus. Fica tanto por dizer. Mas nada mehor, para conhecerem o seu trabalho, que encomendarem os vossos exemplares por mensagem nas redes sociais do Nuno Mangas Viegas.

Fico sempre a pensar no dia em que uma editora irá deitar a mão ao Nuno, aos seus poemas e às suas fotografias. Já era altura. Eu já o tenho garantido no próximo zine Mecónio (sim, já devia estar impresso e a circular, mas a vida tem destes atrasos).

Fica a dica.

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Solo Acoustic Guitar Improvisations I | Dirk Serries

Solo Acoustic Guitar Improvisations I | Dirk Serries

Podem ouvir e comprar aqui.

Uma Höfner archtop guitar de 1957 nas mãos do Dirk Serries é de nos sentarmos e prestarmos atenção a cada momento em que ele toca naquelas cordas, a cada momento em que nos deixa respirar.

Um solo de guitarra acústica num LP que não nos desilude. Começamos com Axis e em menos de 3 minutos estamos em Grid ─ um dos meus temas de eleição deste disco. Permite-nos escutar em diferentes direções, deixa em aberto o que nos será apresentado nos temas seguintes e mostra-nos a versatilidade do Dirk.

As minhas raízes, para quem ainda não me conhece, vêm do rock. Ao longo dos anos procurei outros géneros, onde o meu ouvido fosse desafiado. Foi na improvisação que esse desafio me deu mais prazer. Foi na improvisação que descobri, de novo, os instrumentos, os seus corpos, as suas sonoridades, tudo o que deles pode provir nas mãos certas.

Nestas mãos que aqui desbravam a guitarra descubro um disco que me faz voltar atrás nas faixas. Procurar pequenas nuances e pormenores. Ouvir a guitarra e a forma como o Dirk interage com ela. A forma como falam connosco em simultâneo, sem se atropelarem. Em Overlap percebemos isso mesmo: como músico e instrumento se entendem, se deixam levar pelo momento. O Dirk passa as mão no corpo, ora mais subtil, ora mais agressivo e ela, a guitarra, mostra-lhe as suas potencialidades, dá-lhe o corpo para que os possamos ouvir em pleno.

Em Kinetic senti-me, mesmo que por poucos segundos, numa dança latina em que nos gingamos, em que seduzimos e somos seduzidos. Começo a deixar-me guiar pelo Dirk. Que a sua Höfner, nua e crua, me deixe ir até 31 de julho de 2020. Até ao momento em que este disco foi gravado no Sunny Side Inc. Studio.

Se pudesse sentava-me frente a frente com o Dirk. Teria muito que lhe perguntar. Talvez tentasse perceber que história lhe passou pela cabeça enquanto dedilhava a guitarra. Sons quentes e sedutores. Rhetoric foi o tema que me fez questionar o que lhe iria na mente, que lugares, pessoas, cheiros e sons o fizeram improvisar desta forma.

Sketch é o tema mais longo deste disco. Seis minutos de dinâmicas, de momentos intensos, de toques subtis, cheio de garra e vontade. Fiquei em plena harmonia com o decorrer dos segundos, senti que caminhava para o fim do disco. Entro em Exertion de rompante. Reconcentro-me.

Fecha-se o disco com Areal, mas não resisti a voltar a Sketch uma última vez antes de parar de ouvir. Voltar a esse tema, é voltar ao resumo do disco. É nessa faixa que temos como que a sinopse de tudo o que já ouvimos e do que está para vir.

Aconselho que ouçam com atenção, que se deixem guiar entre mãos e guitarra. O Dirk entra em 2021 em grande com este LP!

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Free Speech by João Sousa & José Lencastre

Free Speech by João Sousa & José Lencastre

Ouvir e/ou comprar no Bandcamp

“Sim.

Tu, eu, uma bateria e um saxofone.

O duo que dialoga. Tu e eu que ouvimos atentamente a liberdade e a contenção.

Free Speech evoca a liberdade de expressão. O confronto, a concordância, o fio condutor, o caos controlado. É por aqui que tu e eu vamos viajar. É por aqui que eles traçaram a nossa viagem.

João Sousa e José Lencastre criaram uma coerência de discurso que dificilmente um de nós conseguirá quebrar. É nesse quebrar que entramos quando as faixas evocam temáticas fraturantes como a destruição e a morte.

Antes da liberdade, a revolução (que de linear não tem nada). É agridoce. Continuamos tu e eu. Espectadores de um mundo em que a liberdade é um conceito ambíguo consoante a realidade de cada um. Um disco em que a revolução é longa até chegar à curta liberdade.

A liberdade parece-nos, logo a seguir, um loop curto. Tão curto que nos conduz até Cabo Delgado e Marielle, na procura incessante de um momento apaziguador. A viagem entre bateria e sopro intensifica-se. Tu e eu continuamos a respirar. Somos livres.

Temos a liberdade de sentir. Tu e eu.

Com as vozes do João e do José procuramos a liberdade de expressão”.

(Liner Notes publicadas com o disco a 25 de abril de 2021)